quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Na Fronteira do Ético – Polêmica em torno de uma geração - parte II

Hoje, continuamos apresentando a seleção de artigos sobre o tema da Geração Complemento. Boa leitura!

Ciências Sociais
AS DIMENSÕES DA SITUAÇÃO HUMANA
Theotônio Júnior
(Ano 1 - Número 6 - Belo Horizonte - 11 de Maio de 1958)

1 - A primeira tarefa para a clareza do que devo expor é procurar compreender o sentido da situação humana. Para isso devo tentar somente uma caracteriologia desta, sem procurar pensar até o fim esta compreensão do homem como ser situado. Devo procurar caracterizar as formas desta compreensão, as várias relações entre seus componentes, e daí tentar compreender a situação humana.

2 - O homem, como ele se conhece, um ser que se encontra no mundo. Mas este mundo já tem formas, certas leis, certo ser próprio. Este homem também já tem em si mesmo uma certa forma de ser: tem dois braços, duas pernas, um corpo enfim que se desenvolve e vai assumindo novas proporções enteriores à sua vontade. É assim que o homem, como ser ativo, é essencialmente um ser que responde. Não é ele que se propõe os seus próprios problemas, estes seriam realmente um choque entre a sua compreensão do mundo e a realidade deste. Assim, o homem não cria, transforma, toda a sua ação consistiria numa interrelação entre ele e o mundo que o cerca. Ora, este mundo que o cerca é constituido por diferentes modalidades de ser que o reptam: pedras de que tem que se desviar, chuva que o molha, automóvel que o conduz, pessoas que agem de diversas formas para com ele, uma sociedade inteira que lhe imprime um dever ser, uma moral. É ainda um determinado ser que reage a este mundo de uma forma específica. E, por fim, reage num determinado momento específico em que só ele poderia reagir e em que só ele está colocado, um momento histórico. É assim que podemos perceber as várias dimensões da situação humana: a física, a biológica, a psicológica, a social e a histórica. Há mais uma que não será desenvolvida neste artigo: a ética.

3 - Até agora pudemos compreender que o homem se situa em determinadas dimensões. Mas é preciso compreender como se situa. Isto é, precisamos caracterizar mais detalhadamente as várias dimensões da situação humana.

4 - Antes de minha existência existia um mundo físico somente no qual eu me conheço e me concebo. Posso não ter consciência das leis que regem este mundo mas isto não me isola do contacto com ele. Se conheço porém as leis que o regem, ou melhor, determinadas leis que o regem, posso transformá-lo mantendo, assim, com ele uma interrelação. Posso tomar várias atitudes diante dele: científica, tentar conhecê-lo, ou mística, tentar explicá-lo, ou poética, sentí-lo, etc. Mas o que realmente importa para o nosso ponto de vista é que estamos situados nele, que não posso deixar de estar nele, pelo menos como eu me conheço. É preciso logo destacar que pelo fato de distinguirmos racionalmente esta dimensão das outras, isto não quer dizer que de fato ela esteja isolada das outras, ao contrário, está intimamente ligada a elas: se eu não tivesse uma constituição vital, biológica, eu não perceberia a sua existência a ela perderia o significado para mim, isto é, não me importaria. Ao mesmo tempo, necessito de um processo sentimental, intelectual, psicológico, e também preciso que isto seja feito num determinado instante que mudará substancialmente o tipo de relação que possa ter com esta dimensão: se vivesse no século 1 não disporia desta luz elétrica que me ilumina o que alteraria fundamentalmente meus conhecimentos, ou mesmo, conceberia este mundo de uma forma inteiramente diferente.

5 - Vejo-me no mundo da maneira como sou. Isto é nasço após um período de gestação e não percebo durante determinado tempo o que passa em torno de mim. Sou criado, sou alimentado, durmo, cresço sou branco ou preto ou mulato, etc., meu corpo tem certas exigências que precisam ser satisfeitas e cuja boa ou má satisfação tem consequência me todo o meu organismo. Tenho um organismo a ser satisfeito. Nesta minha situação biológica é preciso distinguir que há uma parte de mim independente de minha vontade e outra é forjada por mim mesmo, o que aliás acontece com todas as dimensões. Depois veremos a consequência desta liberdade, claro que condicionada pela minha situação. Deve-se nos estar também as inter-relações desta série de fenômenos (que possuem uma característica própria de biológica que as distingue (racionalmente) das outras dimensões da situação humana) com os outros. Quando sou educado, e sou de uma forma que independente de mim, sou criado numa sociedade. Sozinho não poderia responder ao répto biológico, em muitos sentidos ele se encontra respondido pelo grupo onde se formaram meus pais e eu me formo, o biológico e o social se inter-relacionam pois. Assim também acontece com a dimensão psicológica: as minhas formas de reagir me são determinadas por esta sociedadee vão influindo na formação de meu ser biológico. A própria situação física é alterada pela minha presença e é através de meus órgãos que percebo o mundo físico. Assim também a dimensão histórica tem sua forma específica de responder aos fenômenos biológicos e o meu ser biológico livre é condicionado pelo momento histórico em que estou situado. Mas estas interrelações serão mostradas na medida em que fomos caracterizando as várias dimensões.

6 - Ora, se sou um ser de determinadas características biológicas das quais não posso fugir e só posso responder, isto não “importaria” (1) se não percebesse, através de um determinado mecanismo, esta situação. Percebo, memorizo, aprendo, emociono-me, imagino, penso, hajo por motivações de várias espécies tenho uma parte inconsciente de meu ser pela qual estou situado, etc. Isto é, há uma série de fenômenos de características próprias aos quais respondo necessariamente e pelos quais a minha situação está condicionada. Ora, não posso deixar de fazer nenhuma destas coisas e elas constituem, queria ou não, partes do meu ser. É uma dimensão de minha situação à qual tenho que responder necessariamente. Esta resposta pode ser inconsciente ou consciente de qualquer forma ela existirá. Mas as minhas formas de perceber estão relacionadas com a minha situação social e histórica que, como já vimos, influem na situação biológica. A minha situação física altera também minha situação psicológica na medida em que só percebo, a realidade física que percebo, isto é, em que estou situado. Embora não esteja indo como seria desejável para maior clareza, ao exemplo e esteja mais na abstração isto tem um motivo: é que certos exemplos poderiam prejudicar a autenticidade quando lhe faltassem certo rigor científico. O fato de não poder afirmar com grande segurança científica, por falta de uma maior cultura, certos fenômenos psicológicos poderiam levar-me a dar um exemplo falso. Como o que importaria aqui não é exatamente em fato específico de percepção de uma determinada situação mas O FATO de que HÁ esta percepção, deve evitar exemplificações que possam prejudicar a autenticidade da afirmativa. Pois todo o meu trabalho se fundamenta numa elaboração interior e numa visão do mundo que parte de minha experiência pessoal. Quando dispuzer, porém, de maior conhecimento do assunto, exemplificarei para maior clareza.

7 - Há porém uma nova dimensão da situação humana que ainda não foi devidamente tratada. Esta dimensão tem consequência não só no mundo exterior que percebo mas na minha própria percepção. É que pertenço a um determinado agrupamento humano com o qual me relaciono constantemente e dentro de cujo esquema de pensar, concepção de vida etc., penso e me emociono. Assim, há uma série de fenômenos sociais dentro dos quais vivo, sou educado, pertenço ou não a uma classe social, tenho ou não a moral de um grupo, sofro ou não sanções desta sociedade e assim por diante. É uma situação na qual me encontro e à qual tenho que responder, e a minha resposta já está em grande parte elaborada por esta mesma sociedade, ela me ensina como reagir diante dela. Pode-se também perceber mais uma vez as interligações entre as várias dimensões da situação humana quando notamos que nossa forma social de ver o mundo altera fundamentalmente os nossos sentimentos, e toda a nossa psicologia (2). Conforme a sociedade em que vivo tenho tais ou tais hábitos biológicos, como se já não bastasse pertencer a uma determinada raça e não a outra. Conforme a sociedade em que vivo estou mais ou menos abrigado dos fenômenos físicos: se fosse um índio ou um proletário, estaria exposto a chuva e não teria as defesas que tenho na minha posição social e na sociedade em que estou. Assim, percebemos que a alteração em qualquer das nossas dimensões tem consequência em todas as outras, que elas são, portanto, meras divisões racionais, que não se deixam reduzir a estes esquemas.

8 - Mas isto tudo se dá em um determindado momento do tempo físico que, assim carregado de subjetividade, transforma-se em tempo histórico. Pois dentro do tempo físico subsistem as outras dimensões da situação humana e ele se enche de um conteúdo humano. A terra tem milhões de anos, mas, para o homem, somente alguns 5.000 tem conteúdo histórico, tem um significado humano, e isto para alguns homens, e poderá não ter mais para outros homens que, por exemplo, percam a documentação sobre esta época. Esse tempo altera fundamentalmente as outras dimensões e é alterado por elas. Para exemplificar, tomemos um fato qualquer: eu estar escrevendo este artigo. É porque o escrevo agora que posso me utilizar desta caneta esferográfica que só existe de alguns anos para cá, neste tipo de papel com tratamento próprio do século XX, escrevo numa língua própria desta época, idéias próprias de minha idade (fenômeno biológico) e de minha sociedade e época.

9 - Espero ter assim caracterizado razoavelmente, o suficiente para as minhas pretensões, as várias dimensões da situação humana. Vimos assim o homem dentro de uma realidade que o envolve e que ao mesmo tempo ele transforma da maneira como ele é envolvido. E é como este homem “situado” de uma determinada maneira em certas dimensões específicas, que devemos nos ver se nos quisermos compreender. Talvez, com o tempo, possamos vir a conceber uma Antropologia que partiria do estudo das dimensões da situação humana e sua compreensão, e das relações delas entre si e com o homem, para chegarmos a conhecer o homem como ser situado. Tal ciência seria uma síntese do conhecimento moderno do ponto de vista do homem e onde chegaria é impossível calcular.

(1) Quando algo nos IMPORTA, fá-lo de uma determinada maneira. Por exemplo, quando digo que o que importa AO homem é ele mesmo, digo-o na medida em que ele só conhece através de si. Ora, se só pode conhecer através de si, tudo só IMPORTARÁ para ele na sua medida. Isto não significa que Deus, ou o mundo, ou qualquer outra coisa não importa a ele. Nada para o homem pode deixar de ter uma medida humana, e se algo que ele concebe parece-lhe inumano o é na medida do humano, isto é, mais ou menos humano. Para um outro ser o homem importaria na medida deste outro ser.
(2) Todas as dimensões tem esta característica interessante de, ao mesmo tempo em que existem num mundo exterior, já pronto alterarem a nossa percepção deste mundo. Assim, no mundo físico que nos (e portanto exterior a nós) certas formas próprias deste mundo (o clima, considerado no seu todo, a topografia, a alimentação, etc.) alteram profundamente a nossa percepção. Assim também, certos tipos de regiões nos fazem ter certas formas específicas de pensar, etc. Ora, estas formas de pensar ou estas na nossa percepção nos levam a vê-lo, este próprio mundo, de uma maneira específica. Aí pode-se notar bem estas duas faces das dimensões situacionais: a exterior e a interior.


UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA I
Theotônio Júnior
(Folha de Minas - 16 de Junho de 1957)

O jovem moderno mais que qualquer outro sente-se envolvido por uma realidade esmagadora. Na busca de compreensão do mundo que o cerca todos os caminhos lhe parecem falsos. A maioria ficará no caminho e se deixará envolver passivamente. Outros, porém, vão querer seguir e a filosofia é a primeira porta para a compreensão de si mesmo e do mundo. O melhor começo parece ser por uma introdução à filosofia, que espécie de introdução seria esta?
Neste trabalho gostaríamos de responder a esta pergunta. Para isto dividimo-lo em 2 partes na 1º delas tomaremos um exemplo concreto de uma introdução à filosofia, uma das mais importantes, numa segunda parte procuraremos partir de nossa experiência pessoal, mais próxima portanto daqueles que nos circundam, e sinceramente colocar os vários problemas que nos foram prospostos e as soluções que nos parecem mais importantes. Quando temos em mãos uma introdução à filosofia e a utilizamos como tal é porque nos falta a base suficiente para o julgamento filosófico. Ora, devido a esta ausênica, queremos a filosofia em suas várias manifestações para que possamos nos definir diante dela. O que acontece em geral com os manuais de introdução à filosofia é que eles ou são uma introdução a UMA filosofia ou uma compilação bem ou mal feita das várias correntes. Entre o perigo de se deixar levar por um pensamento vigoroso, capaz de nos inibir por toda a vida fechando nos dentro de um sistema exterior a nós, deixando-nos à margem de uma problemática sincera e vital, e a informação sem maior profundidade mas capaz de nos por a par da complexidade do mundo filosófico, sempre optaramos pela segunda, menos perigosa, embora incapaz de formar grandes homens ou filosóficos. Diante deste livro de Karl Jarpers (1) tudo se modifica: ao mesmo tempo que ele faz uma introdução à SUA filosofia, põe sempre claro a necessidade de que tudo seja revisto e de pensar por si mesmo. E com isto, melhor nos introduz no mundo filosófico que os rígidos manuais, super-detalhados onde a gente se perde numa esquematização do pensamento, em regrinhas bem ordenadas, tão distantes enfim do clima de liberdade intelectual que se deve respirar no ambiente filosófico. É preciso estarmos abertos a toda espécie de influência e Jarpers o dirá, é só pela Comunicação que o homem se realiza inteiramente.
O livro é claro e simples, conciso e essencial. É claro que, como diz o autor, muitos problemas não foram nem roçados, mas a sua pretensão não é esta, é abrir o caminho, postar a atitude filosófica e isto o consegue. É preciso acompanhar o desenvolvimento de suas postulações pois todo o livro segue um encadeamento lógico, onde cada parte conduz a outra embora se realize em si mesma.
Inicia por se propor a pergunta: o que é a filosofia? Para ele a filosofia é mais um indagar que um responder. E esta indagação existe em todos, nas crianças e nos loucos também. É sempre original na medida em que tem de ser repensada por cada ser existente. Por isto é que
Qual é portanto a origem da filosofia? Ela é múltiplet: o homem ASSOMBRADO diante do mundo, pergunta, dai surge a DUVIDA sobre o conhecido, o exame crítico e a clara certeza da COMOÇÃO DO HOMEM, de estar perdido na questão de si próprio. Depois estuda a situação do homem, da qual pode fugir ou enfrentar. , e mais ainda: <únicamente en la comunicación se realiza cualquier otra verdad>. Assim, toda filosofia nos impele à comunicação, ela se expressa e quer ser ouvida porque sua essência é a própria coparticipação.
Jarpers usa um termo para solucionar, de certa forma, a antinomia entre idéia e realidade: o circunvalante. Afirma que este suplanta as respostas que se possam dar ao que é. Toda a luta da filosofia nestes milênios não resolveu a questão. Na busca do circunvalante pode-se tentar uma atitude mística, errada . É assim que Jarpers, embora existencialista, não cai em certos exageros anticienticistas, na negação completa da realidade mas ao contrário em sua afirmação. Sua filosofia é das grandes exatamente por isto, não nega, afirma.
Para Jarpers não é possível provar a existência de Deus, . Depois de repassar as provas de sua existência e chamá-las mesmo de frustadas, diz-nos: . Dios es cierto para mí con la decisión pela cual . Dios es cierto no como contenido del saber, sino como presência en la >. Mas isto não chega a provar a existênica de Deus, mostra somente o caminho em que se pode crer nela. Este fracasso do pensamento nada significa, pois Deus é inesgotável.
Há portanto uma necessidade de transceder a realidade direta, nossa liberdade está condicionada por certos requerimentos que devemos seguir na medida em que como filosofos devemos nos sujeitar ao incondicional. Pois esta condição da liberdade é que não seja conhecido seu motivo assim como o motivo do mundo, isto é, de que não tenha condição senão esta. O filósofo tem de seguir um requerimento incondicional que é anterior a todo final como aquilo que assenta os próprios fins. . O sentido do incondicional pode ser resumido em três proposições caracterizadoras: 1) O incondicional não é uma essência e sim uma resolução com a qual me identifico sobre um fundo de inconcebível profundidade. Ele existe portanto na resolução refletida da existência, não vem da essência mas da liberdade, . 2) O incondicional existe somente na fé e partindo dela se realiza para a fé que o vê. Não se pode demonstrar o incondicional. . 3) O incondicional não tem tempo no tempo. Nunca chega a ser duradouro na existência, mas o é como princípio de uma validez definitiva. . Mas nada disto esgota-o. Só se leva a cabo numa eleição entre o bem e o mal, tornando-se uma resolução substancial do homem. Depois Jarpers nos mostra os 3 planos do incondicional: o moral ou o dever, o ético ou a veracidade dos motivos, e o metafísico ou a essência dos motivos. Nunca se podendo situar em um só dos seus planos.
Por estas postulações se pode conceber até onde Karl Jarpers chegará. Tudo que vai expor doravante é uma aplicação deste sentido do mundo: 1) Que é impossível a qualquer homem fugir de sua situação, como tal tem que perguntar eternamente. 2) Na busca do que é, coloca-se num plano científico e só através desta caridade pode chegar a manter um contacto com o circunvalente. 3) Este será sempre superior ao homem, inesgotável como ser e na sua realização histórica. 4) Toda tem que ser contaminada desta busca, ela é uma realização histórica dos valores eternos e só será consciente no sentido de sua transcendência. Todos os outros capitulos o demonstrarão:
O HOMEM é um ser inesgotável, é .
O MUNDO é um ser absoluto do qual toda imagem que fazemos não passa de mundos particulares. Não se explica em si mesmo .
A FÉ E A ILUSTRAÇÃO - a verdadeira ilustração só pode partir da fé no sentido em que negar o mundo é negar a ciência. A ilustração, a autocrítica, mostra ao filósofo que não pode provar a sua fé mas ele sabe que esta parece ter um sentido e que é necessário viver dentro dela. .
A HISTÓRIA DA HUMANIDADE é, como no caso do mundo, manisfestação de algo que a transcende. É impossível chegar ao seu fim último. Toda meta é provisória, particular, superável.
A INDEPENDÊNCIA DO HOMEM QUE FILOSOFA e portanto indispensável para que possa enfrentar sem desânimo o perigo da realidade. Ao homem que filosofa não caberá portanto a atitude de recolhimento dentro de si mesmo senão quando o recolher dentro de si mesmo seja um recolher dentro do mundo. Terá qie participar de um ilimitado afã de perceber e tentar. NO MEIO alcançado o menos possível pela violência, na independência de sua vontade e experiência.
Isto precisa ficar bem claros Jaspers não propõe uma fuga da vida quendo mostra o limite do homem e sua necessidade de transceder este limite. É vivendo que se pode anular esta tensão entre o incognoscível e o congnoscível, entre a essência e a existência, entre o transcendente e o limitado, o invariável e o mutável, que forma toda a base de sua filosofia. Para ele esta tensão se anula na sua realização dentro das antíteses, isto é, no limitado e no temporal e que se deve fazer a vida do homem, sempre iluminada no entanto pelas teses, isto é, o incognoscível, o essencial, o transcendente e o intemporal, manifestações de Deus assim como as antíteses em vez disto são manifestações das teses. Toda existência é a realização de Deus no mundo e só dentro desta verdade o homem pode encontrar a paz na luta da existência. Encontrando em si mesmo a marca de sua transcendência. Eu sou eu porque fui criado por um ser superior a mim e dentro desta verdade construirei minha vida.
Todo filosofar é portanto uma busca de transcendência por um caminho limitado. Assim todo filosofar é legítimo e verdadeiro na medida em que é uma tentativa disto, frustada em sua própria proposição.
Que melhor introdução poderá existir para a filosofia? O estudante terá que estar daí em diante, contaminado desta síntese maravilhosa, entusiasmadora e serena. Aprenderá a ser humilde para com todas as filosofias na medida em que as sabe legítimas, para com o mundo e os seres na medida, em que os sabe inesgotáveis. Ao mesmo tempo aprenderá a ser confiante e orgulhoso para com eles na medida emque sabe que tudo terá que ser remento sistematizado. Todo mundo elabora uma síntese pessoal do que conheceu, má ou boa todos tem uma concepção de vida. O que varia é o conteúdo, mas a forma de chegar a ela é sempre semelhante. Mas o verdadeiramente importa é o conteúdo. Todos temos uma concepção de vida, isto não significa nada. A pergunta é: qual a verdadeira concepção de vida? Creio que o único caminho é o viver filosoficamente, viver com o sentido da busca do conteúdo. Viver com V maiúsculo é o caminho, é a verdadeira introdução à filosofia. Porque nunca nos introduzimos na filosofia, estamos sempre por entrar nela.

NOTAS:

(1) Theotônio Junior, Uma Introdução à Filosofia - Suplemente Literário da FOLHA DE MINAS, 16/06/57 e 30/06/57.
(2) Não podemos considerar os estudos escolares como filosóficos, literários ou científicos. Como já dissemos, na escola o que existe são matérias de ensino e não estudos sérios e desinteressados.
(3) Veja-se artigo: Atualidade e Filosofia. Tomo XIII-Fasc. .I de A Munoz Alonzo e meu comentário sobre o mesmo título no Diário de Minas de 07/04/57.
(4) Karl Jarpers faz imprescindíveis observações sobre leituras filosóficas no seu livro já citado no primeiro artigo desta série. Veja-se também a excelente bibliografia de introdução à filosofia deste autor no mesmo livro e a do professor Arthur Versiani Velloso em , Kriterion, 17-18, 1951.



UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA II
Theotônio Júnior
(Folha de Minas - 30 de Junho de 1957 - Suplemento Literário)

A Formação do Jovem Moderno

Na primeira parte deste artigo prometia eu para segunda parte um estudo da introdução à filosofia do ponto de vista do jovem moderno. Este jovem, como dissemos, se encontra mergulhado numa problemática que o suplanta e oprime. Problemática cuja ordenação fica a cargo da filosofia. É nesta portanto que nos cabe procurar a base para nossa conduta, é ela o caminho que se nos apresenta.
O primeiro problema no estudo da filosofia é a necessidade ou não de uma formação cultural bem estruturada. Digamos mais claramente: de uma formação religiosa, literária, científica e moral dentro de um sistema filosófico ou uma concepção de vida. As primeiras perguntas que se impoem são: há necessidade dessa formação? Qual seria ela? Etc. A resposta é perigosa mas uma coisa pode-se dizer: não dispomos desta formação nem quase todos os membros de minha juventude. Estamos numa época de tremenda inconsistência filosófica, não há valores firmes, tudo é possível de revisão, isso se reflete na escola e nos pais, ambos em geral inteiramente afastados da nova problemática, apegados a valores em plena decadência que os jovens não aceitam. Sua incapacidade intelectual os impede de substituir estes valores e eles se perdem em geral na mera revolta, sem outro conteúdo que ela própria.
É assim que podemos dizer que não há uma formação sistemática na maioria dos jovens. Daí se supõe que devemos partir desta situação já queremos nos situar de um ponto de vista . Não podemos estudar que tipo de formação nos interessaria ter tido mas qual que temos e deste ponto de vista qual a adquirir.
Três meios de expressão inteiramente novos influem na formação cultural do jovem moderno: a revista em quadrinho, o cinema e o periódico (revista e jornais). Com eles vem uma influência direta dos Estados Unidos, influência que se mostra principalmente nas atitudes americanizadas que assume a maioria dos jovens que se limita a este tipo de leitura. Não se pode dixar de notar (um maior aprofudamento deve ficar para próxima ocasião) que isto influi nos nossos próprios esquemas mentais: utilizamos a técnica cinematográfica para pensar, pensamos com cortes, tomadas, , etc, a adaptação a certos tipos de leitura é-nos difícil, não só por causa da idade mas também da influência da revista em quadrinho e por fim os jornais e revistas nos jogam num emaranhado de sugestões plásticas ainda maior na exuberância que a fotografia atingiu para os periódicos modernos.
Isto tudo mereceria um estudo mais profundo que agora não nos interessa. O principal aqui é notar 3 consequências desta formação cultural: 1) A influência destas técnicas puramente óticas e rápidas de narração nos nossos esquemas de pensar, 2) O desligamento de nosso meio cultural e passagem para outro extremamente diferente: o norte americano, que nos põe numa situação à margem de nossa realidade e de nossos esquemas morais. Talvez possa se contrapor a esta educação (muito mais importante evidentemente apesar de todos os perigos) a educação nos mitos brasileiros que recebemos na infância e que deve ser ainda a das nossas zonas rurais, 3) A principal consequência desta formação cultural é o desnudamento que ela nos faz desde crianças de um mundo sem piedade, sem lirismo e principalmente mecânico e ao mesmo tempo, angustiado.
Fotografias e mais fotografias se amontoam no nosso cérebro, filmes inteiros (quantos um jovem moderno já terá assistido. Como Ingrid Bergman em “Anastácia”, não sabe mais se as suas imagens são vividas ou de filmes), angulações exóticas, tomadas com câmara móvel, etc. O que terá consequência direta na nossa iniciação filosófica é este desnudamento, este conhecimento de um mundo enorme sem entrave de nenhum preconceito. A nossa atitude diante do mundo está postada, ele nos parece pequeno e enorme ao mesmo tempo, complexo e incompreensível na sua diversidade de costumes, línguas e religião. É uma visão cosmopolita e desordenaa que se sente chocada ao entrar em contacto com certas filosofias; a tomista por exemplo com seu gosto das regras e da ordem. Se o jovem se adapta a ela devido a falta de contacto com outras logo se encontra desorientado se se põe na frente das postulações modernas. Note-se a tendência dos jovens a aceitarem a moral sociologista quando se poem em cotacto com ela. Há uma enorme tendência para o relativismo na qual não se pode negar a influência desta formação atrás referida. Note-se também a inadaptação ao meio dos jovens formados em seminários desde criança, sua incapacidade de manter uma conversação dentro dos níveis da juventude mais esportiva, vulgo “coca-cola”, ou mesmo a mais séria. Falta-lhe “atualização” (é a única palavra possível, não a uso com nenhum sentido relativista da vida, a esportividade, a gratuidade do jovem moderno.
Contrapondo-se a esta formação, digamos “atual”, duas outras se manifestam em planos diversos as formações familiar e colegial. Na primeira persistem os esquemas, digamos , de conduta, de sentimento e mesmo de visão do mundo. A cultura dos pais pode influir muito mas não o suficiente para que não se faça o contraste, o choque de idéias. Os pais em geral persistem em adotar estas técnicas pedagógicas inteiramente inconsistentes hoje: o côro, o castigo, a proibição, etc. Eles também são relativistas, preferem, por exemplo, o carreirismo à vocação porque entendem na profissão uma atividade puramente comercial, a verdade é que eles encontram-se incapazes de entender o desenvolvimento moderno, só podem entender as novas profissões de um ponto de vista exterior, não compreendem sua função social. E isto acontece com o jovem mesmo: quando entra para a universidade está inconsciente do que representa sua profissão. O relativismo dos pais é gritante, sua tolerância religiosa em geral (não se pode deixar de por em evidência aquilo que em sociolodia chama-se sincretismo religioso) é eivada de um oportunismo ingênuo, atem-se pura e exclusivamente a seus aspectos exteriores.
Destacados assim rapidamente o aspecto relativista da formação familiar, seu apego as meras formas dos esquemas passados, vejamos a formação do colegial. Desde criança, no grupo escolar, ele entra em contacto com uma problemática inteiramente nova para si. Não se pode compreender o seu sentido. Para que saber todas aquelas coisas, que relação tem elas com a vida e o mundo? Diante desta incompreensão que absolutamente os professores não entendem, pois também não a possuem, a têm-se mais uma vez às formas: decora, despreza o conteúdo. Esta formalização traduz-se mais explicitamente na necessidade de , da , no conceito das ciências como . E isto persiste geralmente até o colégio e, na maioria das vezes, até a universidade. O colégio não passa de um meio para se vencer na vida é a mais prática de se adquirir posição, dinheiro, etc. Formas, formas caducas, sem conteúdo. Há uma enorme e estúpida crise de conteúdo.
Destaquemos portanto estes 3 elementos básicos da formação do jovem moderno: 1) A formação que chamamos de “atualizada” (as revistas em quadrinho, o cinema e os periódicos) que se traz ao mesmo tempo um contacto com a problemática mais próxima deste jovem, isto é, um maior conteúdo, peca por uma inteira e completa dissolubão formal, falta-lhe uma ordenação bem realizada, uma estrutura a que possa se apegar. Consequências: sentimentos de angustia diante do mundo, relativismo moral, choque com a cultura popular, esquemas de pensar diferentes dos livrescos, desajustamentos. 2) A formação familiar puramente formal e incapaz de compreender a evolução social, relativista. Consequências: reação do jovem contra ela ou aceitação passiva, relativismo moral, desinteresse pelo conteúdo humano, falta de atualização desajustamento social no primeiro caso, desajustamento moral e intelectual no segundo. 3) A formação colegial, formalista, distante e de seus interesses, incapaz e desonesta. Consequênicas: utilização da escola como meio, desacreditamento na cultura, desajustamento.
Em qualquer ponto desta formação que a cultura chamada nos encontre, se na mera gestação ou se já quando se encontra cristalizada esta formação, em qualquer ponto dela, exercerá uma enorme influência na nossa reação a estas novas formas de pensamento. É fácil perceber-se como qualquer sistema filosófico representa um perigo para o jovem sem nenhuma preparação filosófica. Vê-se que traz em si os germes das mais diversas atitudes. Qualquer filosofia que possa entender pode significar um engajamento artificial, a tomada de um apriorismo para o resto da vida. Poderiamos até justificar o interesse por certas carreiras técnicas não só pelo seu aspecto social e suas possibilidades financeiras mas também por este desejo de encontrar algo firme em que possa confiar. Qualquer atitude pode atrai-lo, pode mesmo passar de um extremo a outro pois sua formação é tão complexa que pode levá-lo a qualquer atitude. É claro porém que as posições relativistas são as mais atraentes.
Mas não podemos estudar nesta segunda parte do nosso artigo a formação propriamente filosófica. Este estudo fica para um próximo artigo em que o possamos desenvolver mais amplamente.


NOTA: É verdade que não utilizamos neste artigo dados que possam comprovar a maioria de nossas afirmações. Utilizo aqui somente a minha intuição e o resultado minhs observações em contacto com um grande número de pessoas de minha juventude. É claro que falo também somente dos jovens da classe burguesa. Nada posso afirmar em relação à formação dos mais pobres, falta-me o contacto com eles o com estudos sobre o assunto. Pode-se notar porém que pelo menos o cinema e a revista em quadrinho não deixam de exercer sua influência entre eles. Mas certamente provocam reações diversas. De qualquer jeito este artigo é só um levantamento da questão, não pretende esgotá-la nem mesmo tê-la arranhado profundamente.


UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA III
Theotônio Júnior
(Folha de Minas - 1957)

Nas duas primeiras partes deste artigo ficamos só em torno de uma possível introdução à filosofia. Na primeira (1) comentamos ligeiramente um caso concreto de introdução à filosofia. Esta introdução, dissemos, tinha como principal mérito (do ponto de vista puramente pedagógico) prevenir o estudante da complexidade filosófica, ensinando-lhe a ver com humildade o pensamento humano, pô-lo em guarda, postar sua atitude filosófica como crítico e ser aberto.
Na segunda parte do nosso trabalho (2) procuramos as principais características da formação do jovem brasileiro moderno. Destacamos 3 novos meios de expressão (o cinema, a revista em quadrinho e o periódico), falamos ainda das formações familiar ainda e escolar. E concluimos por uma enorme crise de conteúdo nas 2 últimas e uma grande falta de ordenação na primeira. Gostaríamos agora de ver ainda em termos sumários como tem sido estes artigos, que espécie de formação tem este jovem quando entra em contacto com a cultura universal ou a . Ou melhor: com que espécie de literatura filosófica ou científica entra-se realmente em contacto (2) quando se deixa a cultura popular.
Num determinado momento de sua vida um jovem sente que precisa conhecer mais, que tudo que pensa não passa de imprecisões de toda espécie. Geralmente até então já teve alguma iniciação. Esta pode se fazer de várias maneiras: através de alguns professores (esceções evidentemente, mas capazes de desbravar caminhos), de influências de amigos leituras de jornal ou outra qualquer coisa. As primeiras leituras mais importantes são os suplementos e revistas literárias. E por elas que o jovem entra em contacto com a complexidade do campo intelectual. Vêm também as leituras de livro e hoje no Brasil se começa por incontáveis possíveis e impossíveis começos. Uma coisa posso dizer: jovem que se interessa por literatura raramente começa por romance de adolescência. Quer é dar o salto de uma vez. E o cinema já foi dado anteriormente. Mas os preparou para isto, o salto é imprescindível que a literatura suscite os filosóficos e que estes suscitem toda uma outra enorme necessidade de conhecer.
Não se pode contudo deixar de assinalar que a nossa formação é principalmente (e quase exclusivamente até o fim de adolescência) literária, e quando falo de literária incluo a poesia (de que nenhum brasileiro escapa), o cinema, a revista em quadrinho, o conto (tão divulgado). Formação literária, é inegável.
Os caminhos que nos conduzem à filosofia são um tanto exóticos para aqueles que se formaram nas escolas disciplinadas de outras eras. Hoje nós temos que adquirir a nossa disciplina intelectual. Somos nós mesmos que a propomos. Feliz ou infelismente nós é que nos educamos. Não se fale aqui de um extremo auto-didatismo, não se trata exatamente disto: se somos orientados por um ou outro professor, se temos em mão uma enorme quantidade de manuais de toda espécie ... Não há propriamente um autodidatismo no sentido da busca só sem auxílio exterior, o que há é uma extrema complexidade de influências dentro da qual o jovem tem que agir sozinho.
Vários são os gêneros de literatura filosófica com os quais o jovem pode entrar primeiramente em contacto. É bem possível que ele comece por coisas de pequeno fôlego: monografias, histórias, resumos enciclopédicos, as discussões entre amigos, etc. O que acho essencial é a visão que teríamos que chamar dos assuntos. Esta visão é principalmente historicista: exige uma colocação do autor no seu ambiente histórico. O conhecimento das várias atitudes filosóficas é indispensável. Sob pena de perder inteiramente seu estudo, o jovem tem que começar pelos modernos, é indispensável. Só podemos voltar às importantes formulações gregas ou medievais e outras tantas após o suficiente conhecimento das atuais. Não pode evidentemente de um desconhecimento destas formulações, seria inútil o estudo moderno sem elas. Falo de um menor aprofudamento. Falo de vê-las sob o nosso ponto de vista. O atual contem o antigo. É inevitável que se inverta o processo mas até certo ponto: há momentos em que é preciso voltar. E é preciso bastante consciência para não se perder na mania do moderno (3). Entre o moderno e o verdadeiro este terá sempre primazia.
Mas há certos momentos do pensar em que só o moderno pode ser verdadeiro ou pelo menos o ponto de partida.
As maiores dificuldades além das já enumeradas que tem um estudante para o bom entendimento da filosofia são: 1) Um conhecimento em geral puramente formalista das línguas, é capaza muitas vezes de dizer a classificação de um período sem tê-lo compreendido. Deixa-se entulhar de gramática. Não há estudo mais prejudicial à inteligência humana que a gramática. O escritor tem que ter dificuldade com a palavra, tem que lutar com ela, se o fraseado é fácil, se já tem as construções prontas nada consegue de essencial e verdadeiro. Seria preciso ler em outras línguas, falar em outras línguas e isto não é feito no colégio e em geral. 2) Há também o perigo da fixação em teorias não por ter chegado a elas através de uma elaboração lenta mas por serem as primeiras encontradas. O iniiciante em filosofia não pode começar por um sistema, tem que se perder neles e deles emergir vitorioso. Só assim terá vivido a verdadeira experiência filosófica. Tem que correr o risco do desespero, tem que deseperar-se e mesmo assim continuar como K. em busca do Castelo que nunca consegue alcançar ou o homem transformado em inseto da Metamorfose que aceita passivamente sua situação e busca compreendê-la. Estamos num momento kafkaniano, só Kafka pode nos consolar nesta derrocada. Desesperar-se serenamente, nosso desespero nunca será total, haverá sempre algo a procurar. 3) uma terceira dificuldade é o desconhecimento de quase todas as ciências (note-se que fez-se um incrível antagonismo entre ciênica e literatura como se as duas se opusessem: nem um literato precisa de ciênica nem um cientista precisa de literatura (?). Isto merece uma incrível pergunta: porque? Talvez a origem esteja do lado de lá, isto é do lado dos cientistas. Não se pode deixar de destacar o papel dos positivistas nesta dicotomia ou dos existencialistas do lado de cá. Mas hoje caminhamos para uma reolução desta falsa antítese: há falta de base em todos os campos. Há uma enorme balburdia que é preciso suplantar. E não há dúvida que em todos os campos da nossa cultura há uma tendência bem avantajada para isto: equilíbrio, ordenação são as palavras que parecem trazer oxigenio para este estado de espírito.
Para mim porém este estado é absolutamente necessário. Não posso conceber filosofia sem drama, não posso conceber uma filosofia que não venha de um sofrimento de verdade, desta angústia que não aceita falsas soluções. É fácil notar como há uma enorme tendência para agarrar-se a alguma coisa. São poucos os qie aguentam viver neste clima intelectual, nesta asfixia angustiada, neste desespero desnudado. É quase irrespirável. Mas queiramos ou não a gente caminha para esta alguma coisa, há entre as várias outras coisas algo que nos parece verdadeiro. Isto surge depois que a própria dispersão nos conduz à uma síntese a uma pequena síntese é verdade, esta simplesmente nos conduz a uma afirmação uma resolução: isto ou aquilo? É preciso decidir. Neste ponto em que já estamos mais ou menos integrados numa linguagem científica propomos a nós mesmos um plano de estudo: parece nos que uma nova etapa seria uma sistematização imprecisa através de histórias de filosofia e outros campos do saber, alem duma história da civilização, tratados e manuais sobre vários campos, ensaios e monografias mais sérios e sistematizados.
Desta sistematização imprecisa, capaz de nos dar uma visão geral necessariamente rápida e superficial da filosofia mas, o que é necessário, complexa ligando as várias coisas entre si. Não um aprofudamento balofo sem uma visão do geral. É a mesma coisa que preferir o conhecimento do mar de um pescador de pérolas de uma pequena ilha ao de um marinheiro internacional. Aprofundar-se sem noção do todo, sem visão da complexidade do saber humano é aforgar-se, é inutilizar-se. Depois desta dispersão sistematizada viria um período de cristalização com o contacto direto com os filósofos. Talvez seja necessário aprofundar-se em um deles, como diz Karl Jarpers (4). Mas havemos sempre de nos resguardar de uma confiança excessiva. Esta deve existir somente quanto à aceitação do ponto de partida do filósofo: aceito seu ponto de pertida partamos com ele até o fim do seu pensamento. Mas feito o trabalho de pensar com ele cabe-nos a crítica necessária e inevitável. Desta nova fase caminhamos para uma nova síntese em geral restrita aos especialistas em filosofia (pois até esta fase todo estudioso de qualquer campo deve necessariamente bem ou mal), a quem deve caber estudos mais profundos, releituras, criteriologia mas rigorosa, etc. Este especialista deverá testar a sua síntese a todo momento para evitar a fossilização. O verdadeiro filósofo é o que passa este período, é o que suplanta as outras sínteses quando elabora o seu próprio sistema. Mas até aí quantos terão chegado?
Em resumo, portanto, o estudo da filosofia se faria em algumas fases que, é claro, se interpenetram como é natural e recomendável, e que são:
1) Período de dispersão (literatura, línguas ciências, filosofia em doses ligeiras através de vários meios de expressão).
2) Período de sistematização imprecisa, manuais, histórias da filosofia, obras didáticas de mais
3) Período de sistematização (contacto com os verdadeiros filósofos).
4) Período de um síntese maior (só especialistas cabería testar a sua síntese pessoal anterior).
5) Período de um sistema pessoal (só os filósofos chegam à elaboração de um sistema (não uma síntese) inteiramente pessoal que suplantaria os outros sistemas até então existentes).
Parece-me também que isto se realiza com todas as pessoas humanas, com diferenças de grau e substituindo-se os estudos filosóficos pelos científicos, literários ou mesmo pela nossa experiência pessoal, que conforme os vários campos da atividade humana, substituiriam assim os campos do conhecimento.



PORTA DE LIVRARIA de Antonio Olinto
(O Globo - 11 de Junho de 1958)


BELO HORIZONTE


Está sediada em Belo Horizonte uma geração que lança longe as suas redes. Nova fase, nova e firme, da afirmativa de que “são os de Minas que vêm”. Poucas são as quinas - na estética, na sociologia, no cinema, na história - que não estejam em discussão nos encontros que, em Belo Horizonte, escritores de várias gerações realizam constantemente. Alunos e professores. Poetas de obra formada e jovens em busca do verso exato. Críticos de artes plásticas e estudiosos de problemas sociais. Todos se demoram em conversas que tocam o fundo das coisas. Durante três dias, surpreendidos em vários desses momentos espontâneos de debate, em que o tom natural do dia-a-dia despojava de qualquer falsete professoral as teses que apareciam.


A ITATIAIA


É, principalmente, na Livraria Itatiaia, de Édison Moreira, que esses encontros se realizam. Lá pelo fim da tarde, começam a entrar os componentes do grupo que nunca é o mesmo, que se renova, que se amplia, e que se subdivide em grupos menores. Vem a Itatiaia, com suas edições, chamando a atenção do Brasil para Belo Horizonte. “Judas, o Obscuro” de Thomas Hardy, “Guerra e Paz”, de Tolstoi, “Águas de Siloé”, de Thomas Merton, “Refúgio Tranquilo”, de Pearl S. Buck, “Uma Família no Bairro Chinês”, “Lady Wu”, de Lin Yuntang, “A Bíblia Disse a Verdade”, de Sir Charles Marston, eis alguns dos muitos títulos estrangeiros que Pedro Paulo Moreira colocou no mercado brasileiro de livros. Está, além disso, apresentando as obras completas de Antônio Tôrres e lançando livros de vários escritores locais. É, por isso, natural, que o movimento cultural de Belo Horizonte se concentre na Livraria Itatiaia. É diante dos livros que as conversas nascem, que os interesses por um ângulo de um determinado assunto adquirem forma.



CONGRESSO DE VANGUARDA


Pretendem os jovens de Belo Horizonte realizar um “Congresso de Vanguarda”. Ótima idéia. Apesar da observação que a inteligente irreverência de José Felisberto Pimenta fez no momento em que se falava do assunto - “nem tudo o que é novo é bom” - é da máxima importância que se discuta o que é vanguarda em literatura, em cinema, em teatro, em pintura, em filosofia. Frederico de Morais e Theotônio Júnior levarão, estou certo, essa idéia à frente. É preciso que alguns caminhos sejam abertos. Ninguém espera que, num congresso dessa ordem, se chegue a uma conclusão unânime. Nem é para tal que se discute. O importante é que, numa cidade em que as idéias estão como que em ebulição - e num País em que essa ebulição faz parte de um desenvolvimento geral - o cerne de certos problemas possa ser trocado. Porque só assim o esforço individual de alguns artistas poderá ter oportunidade de descobrir, em pouco tempo, muitas realidades que, de outro modo, exigiriam, para se tornar claras, o trabalho de uma vida inteira. E Belo Horizonte conseguirá, com esse congresso, marcar a presente, na vida cultural do Brasil, de uma geração que lança longe as suas redes.



REVISTAS


Numa cidade em que os jovens tem uma vida cultural tão intensa, não poderiam faltar as revistas. “Complemento”, dirigida por Theotônio Júnior, Silviano Santiago, Maurício Gomes Leite, José Nilo Tavares e Ari Xavier, reflete as inquietações de que hoje começam a lidar com o mundo da expressão. “Tendência”, de Fábio Lucas, mostra aspectos diferentes das mesmas inquietações. “Complemento” já lançou ainda, volumes de poesia: “Das Emoções Necessárias”, de Heitor Martins, “Elegia de Tempo Perdido”, de Elói Silveira Reis, “Ilha Sonâmbula”, de Pierre Santos, “A Construção”, de Theotônio Júnior. Dentre as revistas de Belo Horizonte, deve ser destacada a que a Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais edita, “Kriterion”, em cujo número mais recente há, no meio de muita coisa boa, um ótimo estudo de J. Lourenço de Oliveira, “A Fala e a Língua” (não sei se o autor do ensaio leu “Sein und Zeit”, de Heidegger, em que o filósofo alemão dedica um capítulo ao problema e se baseia nesta premissa: “A fala é o fundamento ontológico existenciário de língua”).



INICIATIVAS


No decorrer dos três dias passados em Belo Horizonte, vi a atividae de Anita Uxa e suas “Amigas da Cultura”, a de Giustino Marzano e seu Teatro Universitário. Marzaon dirigiu e montou, no Instituto de Educação, “Morte na Catedral”, de T. S. Eliot. Durante quinze dias consecutivos, o teatro do Instituto atraiu platéias entusiasmadas. Está, ainda, Belo Horinzonte, com um Museu de Arte, em que muitas iniciativas são tomadas. Klaus Viana mantém, na cidade, uma Escola de “Ballet”, que já transformou “Cobra Norato” em “Ballet” e pretende apresentar, em breve, uma coreografia inspirada no poema “Caso de um Vestido”, de Carlos Drummond de Andrade.





CAMINHO NOVO


Naquela tarde (foi em fins de semana passada), a Itatiaia estava cheia. Estava sendo feita a apresentação do livro “3 Mulheres de Xangô”, de Zora Seljan. Dentro da livraria e na galeria fronteira, estavam, entre outros, o Desembargador Mário Matos, o Padre Orlando Vilela, os professores Júlio Barbosa e Luís Iglésias, Lúcia Machado de Almeida, Henriqueta Lisboa, Fritz Teixeira Sales, Ildeu Brandão, Fábio Lucas, Afonso Romano de Santana, Moacir Andrade, Didimo Paiva, Jair Silva, Frederico de Morais, Heitor Martins, Rui Mourão, Ana Maria Viegas, Edmur Fonseca, Anita Uxa, Silvio Felício dos Santos, Carlos Denis, Giustino Marzano, Carlos Kroeler, Kraus e Angel Viana, José Felisberto Pimenta, Theotônio Júnior, o poeta de “Construção”, saudou a autora de “3 Mulheres de Xangô” e incluiu, nessa saudação, também, o responsável pela “Porta de Livraria”. Depois de citar o trecho em que Oxum se recusa a ir para guerra, afirmou Theotônio Júnior: “Por este pequeno trecho podemos notar toda a poesia, e ingenuidade, o sentido dramático-popular da peça, em contraposição à sua estruturação, à sua armação e ao sentido estético ocidental. Zora Seljan abre, assim, à juventude brasileira, o caminho de um novo teatro que pressupõe o contato com a cultura teatral ocidental e uma imensa cultura brasileira, do nosso folclore. Ou, melhor, abre caminho para uma arte brasileira universal”.


Um Repórter nas Letras e nas Artes - Affonso Romana de Sant’anna

ENTREVISTA Nº 7 (THEOTÔNIO JÚNIOR)
EXISTE UMA “JUVENTUDE TRANSVIADA” NA LITERATURA
(Diário de Minas - 11 de Maio de 1958)


Theotônio Júnior, nascido em 1937 é o responsável pela existencia da revista “Complemento” da qual vimos entrevistando os membros. Tem um livro de poemas: - “A Construção”, uma tradução sobre Gide, de Marc Beigberder com Nadine Smeers e um argumento de ballet aproveitado por Klaus Viana. Trabalhou no Teatro Universitário, atualmente é estudante de Sociologia e prepara um livro: “Na Fronteira do Ético ou Auto-Critica de Uma Geração”.
T.J. é um dos membros mais agitados da “Complemento”, do qual espera-se algo. Por isto realizamos com ele uma entrevista intimista, procurando mais revelar o homem do que o escritor e suas idéias. E este é o diálogo:

1) Acredita em Theotônio Júnior?
R. Inteiramente. Este rapaz é o meu maior amigo e temos contato diário, posso afirmar que é inteiramente inesperado.

2) Queixa-se de algo?
R. Da expoliação das massas e de minha falta de tempo e coragem para participar de sua revolução.

3) Diga algo dramático.
R. Qualquer dramalhão mexicano: a perdida.

4) Já pensou na vida eterna?
R. Penso diariamente e acredito piamente nela, isto ainda é mais trágico que o dramalhão.

5) O que a literatura tem feito de sua vida?
R. A literatura não, mas a vida intelectual é a minha vida com algumas fugas.

6) Acredita numa juventude transviada na literatura?
R. Evidente. Ela existe, veja-se a “beat generation” nos EE.UU. ou os “out-side” na Inglaterra, ou os existencialistas em todo o mundo. É a atitude mais honesta de um jovem literato em nosso tempo. A minha não é esta porque não sou um literato.

7) Já pensou se morresse assim, aos 21 anos?
R. Não porque sei que vou morrer aos 67, depois de completada a minha obra.

8) Tem algum protótipo na literatura e na vida prática?
R. Palavra chata. Não sei disto, conheço os tipos ideais do Max Weber, serve?

9) Que conselho gostaria de dar aos 4 grandes?
R. Boa vontade, consciência, dignidade humana e não se comprometerem tanto com os grupos poderosos economicamente. E eles me dariam um conselho: porque não vai cuidar de sua vida?

10) Faça uma acusação ao mundo?
R. Ao mundo não, mas ao homem, a mim principalmente. Mas não sejamos bíblicos, isto era de gosto dos profetas que eu sou só nas horas vagas e no meu diário. Mas uma pergunta: para que a vida, mesmo se depois de morto eu fosse para o céu, ainda seria uma coisa inteiramente desnecessária.

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