terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Na Fronteira do Ético – Polêmica em torno de uma geração

Nos próximos dias postaremos em torno à Geração Complemento. Começaremos com algumas das matérias dessa revista, inclusive com polêmicas que a cercaram, como a com Ana Maria Viegas. Isso no tempo em que Theotonio dos SAntos ainda assinava Theotonio Júnior. Boa leitura!



NA FRONTEIRA DO ÉTICO O DEBATE SOBRE A GERAÇÃO COMPLEMENTO



DE UM ENSAISMO SITUADO


Theotônio Júnior

(Complemento nº 3 - Belo Horizonte - Janeiro / Fevereiro / Março de 1957)



Para chegar a justificar a existência de um ensaismo “situado” é necessário antes de tudo que eu caracterize a própria “situação” sobre a qual falo. “Situação” é aqui considerada num sentido bastante amplo cuja tendência para o metafísico procurarei evitar para tentar somente uma tipologia em termos sumários deste elemento essencial à minha concepção do mundo.

O homem é um ser situado fisica, biológica, psicológica e historicamente. Estas dimensões da “situação” humana revelam-se nos seus mínimos atos e não podem ser afastadas nem negadas. O máximo que o homem pode fazer, e tem feito, é “transformar” estas dimensões. Não há, em termos absolutos, “criação”, o que há é “transformação”, mesmo que os elementos utilizados nesta transformação sejam os mais distantes possíveis dos resultados. Não é só no plano físico e biológico que o homem obedece as leis reais e intransformáveis, no plano psicológico, social e histórico elas também existem. Mas não estou falando em desenvolvimento ciclóide da história, em lei dos 3 estados, falo de leis como, por exemplo, a de que não pode existir uma sociedade sem uma moral, e outras de caráter mais geral e menos discutíveis. O assunto transcende os limites desse trabalho. Já disse atrás que evitarei os aspectos metafísicos pelos caractereológicos. Caracterizada portanto, de um modo geral, a espécie de “situação” de que desejo tratar procurarei agora caracterizar as suas várias dimensões na “nossa” sociedade, no “nosso” tempo e na “nossa” psicologia, para, por fim, formular a possibilidade daquilo que chamo de um ensaismo situado.

No plano social a nossa geração é essencialmente burguesa, como a nossa sociedade. Ao que tudo indica a burguesia está decadente e esta decadência provoca uma revisão de valores. Ao mesmo tempo, o homem não consegue equilibrar as suas normas de vida com o seu progresso técnico, este se faz muito depressa para o mundo dos valores, mais lento e muito mais consequente nas suas transformações. De qualquer forma, esta revisão de valores e esta insegurança social existem e transformam o jovem moderno num revisor que não dispõe de meios para esta revisão, um “rebelde sem causa”. É o grande “repto” de nossa sociedade aos seus futuros intelectuais. Se houvesse uma linha traçada ou uma possibilidade clara de descobrirmos esta linha, poderíamos ser menos inquietos o que não significaria a solução do nosso problema, pelo contrário: significaria a nossa ruina total e a da nossa sociedade. O burguês não aceita a ascensão do proletariado, o branco não aceita a ascensão do negro, o comunista tenta fazer aquela ascensão completamente afastado da realidade histórica, social e política. O próprio operário não encontra outra liderança que o dogmatismo comunista ou a desorientação trabalhista. Onde ficamos nós os que devemos estudar estes problemas, os futuros intelectuais? Diante dessa situação poderíamos estar firmes, apoiados em doutrinas que não entendemos e nas quais não podemos confiar, ou poderíamos negar a possibilidade deste trabalho e ficarmos com os valores burguêses mesmo: o do estudo desinteressado destes problemas, de gabinete, um pouco dramático mas nunca trágico. Eu não apontaria uma solução, não sou tão ousado. Mas creio que se a tarefa da revisão não fosse (que muitos não desistirão) tentada isto significaria o fim da nossa civilização. Não se lamente portanto que a nossa geração pareça apática e velha, é condição de sua situação dentro da sua sociedade e do seu tempo.

Historicamente porém a problemática não é só esta: se falamos atrás em “ascensão do proletariado”, em “burguesia decadente”, em “lutas de classes e raças”, em “dogmatismo comunista”, em “desorientação trabalhista”, etc., é porque recebemos esta problemática já colocada pelos nossos antecessores e não porque tenhamos uma “vivência” direta com elas. São abstrações com as quais jogamos sem sabermos ao certo suas regras nem sua meta.

Dêstes problemas o que nos toca mais de perto é a “revisão de valores”, talvez ou certamente consequência de tudo isto. Ao lado desta necessidade de uma revisão total, ousada e colossal dos valores de nossa sociedade e de nossa época, encontra-se a nossa grande dificuldade: a metodológica, qual o método a seguir. Se tentarmos a Cultura (a “haute culture” ao contrário da “culture de masse”) com C maiúsculo, isto é, a cultura sistematizada, científica, ou mesmo literária e artística, temos logo dois grandes problemas. Em primeiro lugar: o da especialização e o do “nosso” (belorizontino) ambiente universitário. O primeiro coloca o homem moderno em geral num dos seus maiores impasses. Ao mesmo tempo que este reconhece os malefícios do fechamento dos vários campos do saber humano em compartimentos cada vez mais fechados, em busca de metodização própria, de liberdade de ação dentro de um campo claramente limitado em busca de uma clareza e objetividade muitas vezes duvidosas, ele tem que reconhecer também a impossibilidade das grandes visões impressionistas (como a que estou fazendo agora) dos vários campos do conhecimento humano. Este especialismo (talvez ainda consequência da revisão de valores e, portanto, dos distúrbios sociais de nossa época) conduz-nos a um reconhecimento da nossa impossibilidade biológica mesmo, de uma compreensão de nossa época e do nosso mundo físico, biológico, psicológico, social e histórico. Assim, a nossa própria “situação” impede-nos de compreendê-la. Ao lado disto ou inteiramente ligado a isto encontramos nós, os jovens em geral e principalmente os das províncias semi universalizadas (1) como Belo Horizonte, a desorientação, o auto-didatismo que leva-nos à busca sós da Cultura sem possibilidades de crer nas nossas universidades (nos colégios secundários nem se fala). Mas a formação universitária, o contato desde cêdo com a Cultura em geral, são coisas indispensáveis para esta revisão de que falamos atrás que não para a compreensão também indispensável daquilo que já foi realizado no saber humano e sem a qual é absolutamente impossível qualquer ação honesta e sincera no sentido da compreensão do homem e do mundo. A extensão do saber humano atual e as nossas dificuldades em conhecê-lo, assim como à nossa realidade mais próxima, através da pesquisa constante, tarefas da Universidade no sentido amplo da palavra, são “situações” das quais não podemos ou não devemos fugir e sim transformar, em busca da sobrevivência da nossa civilização.

(1) Isto é, a sociedade a meio caminho entre a “haute culture” e a “culture de masse”, isto é, entre a cultura sistematizada e a cultura popular.


Passando do plano social e histórico para o mais próximo: o psicológico e o biológico, temos a considerar que acima de tudo somos jovens. Jovens um tanto envelhecidos talvez, mas sempre jovens. O adolescente necessita de experiências, principalmente no plano sexual, sem as quais adveem evidentes frustações, impossíveis de controlar e incapacitadoras da tarefa antes de tudo “sadia” da revisão de valores. Na nossa sociedade, as experiências sexuais são cercadas de limitações tão grosseiras que as transformam em atividade tramendamente dispersiva, quase que também uma especialização que exige toda uma técnica da conquista, técnica exigente, sem sinceridade, sem naturalidade, dispendiosa às vêzes. O problema sexual é, na realidade, um dos mais absorvente e de mais difícil solução. A diferença de cultura do homem para a mulher, as restrições sexuais desta, tornam as relações entre os dois sexos de luta e não integração. Esta situação biológica dificulta ao jovem o suficiente desprendimento para a busca da compreensão dos outros aspectos do homem. Ao mesmo tempo, a família, em geral representante da cultura popular, e incapaz, portanto de compreender a necessidade desta sistematização cultural, desambienta o jovem e compele-o à dispersão dos bares e das conversas de rua. Tudo isto e outros problemas como os econômicos ou os de ordem biológica ainda como os de crescimento, energias utilizadas pelo corpo neste sentido impedindo-lhe esforços maiores em outros sentidos, são determinantes, “situações” que a nossa formação brasileira impede-nos (aos futuros intelectuais que, segundo a nossa mentalidade, não devem preocupar-se com tais problemas) de compreender a nossa própria “situação” e à Cultura em geral. É fator biológico, por exemplo, a impossibilidade de se entregar ao estudo sistematizado que nos exige algumas 6 horas diárias, psicológico e social também, na não adaptação a este estudo em épocas anteriores. A nossa situação, portanto, no plano psicológico e biológico, é desfavorável, são reptos que temos que responder e não fugirmos deles. Reptos para os quais a nossa sociedade não dá resposta e que portanto devem ser encontradas na “haute culture”. Que não é um hábito cristalizado numa educação coerente mas adquirido por esforço próprio.

Do que dissemos atrás, podemos concluir que em vez de uma integração há uma luta entre a “haute culture” e a “culture de masse”. O intelectual desliga-se de suas origens culturais para uma brusca entrada na cultura sistematizada. Não se culpe assim os jovens que não tiveram oportunidades de sistematização cultural através de influências paternas e de professores ou de “reptos” vitais que os levassem a uma necessidade de sobrevivência através da cultura sistematizada, de “falta de inteligência”, de produto de civilização decadente. Nem se culpe à cultura sistematizada da distância criada entre ela e o povo. Que um jovem que lia revistas em quadrinhos passe de repente a ler tratados científicos, mesmo didáticos, e possa compreendê-los, é uma exigência absurda. Estas coisas têm que ser cristalizadas desde a infância em hábitos que não se substituem por outros com tanta naturalidade.

A problemática da “situação” é, portanto, enorme demais para este trabalho. Cremos que já conseguimos caracterizá-la em suas diversas dimensões como se apresentam à nossa geração. Não me cabe discutir problemas que transcedem ao meu objetivo como, por exemplo, se a religião cristã seria uma salvação para esta geração, com seus valôres já firmados e desenvolvidos; o que nos interessa é constatar a necessidade da revisão de valores e não onde ela possa chegar mesmo que seja a uma volta a valores passados; não tenho a pretensão de tanto. O que fiz até agora foi uma simples introdução à segunda parte de meu trabalho que é uma tentativa de procurar as formas de expressão que tal “situação” exige para que o que realizarmos tenha um sentido mais verdadeiro, mais sincero, mais realista e portanto mais “situado”.



II



O “ensaio foi principalmente um gênero a meio caminho entre o objetivo e o subjetivo. Se atualmente descamba para um sentido mais geral de gênero de prosa, de ensaio crítico, não julgo que deva perder aquele seu sentido de origem, mais de documento, mais de registro de idéias sem maior sentido crítico. E é deste tipo de ensaio que falo quando proponho um “ensaismo situado”. Depois de ter tentado caracterizar a “situação” do jovem moderno dentro de uma problemática que transcende sua capacidade, limitada ainda por outras dimensões da “situação” humana, dos problemas sociais, cada vez mais absorvente, da enorme tarefa da revisão de valores, depois de tentar caracterizar esta “situação” e de aceitá-la como terrivelmente grande para nós, não posso exigir que a nossa geração seja calma e serena como qualquer geração clássica. Ao mesmo tempo o jovem ainda sofre uma limitação muito forte e direta, consequência talvez dos vários fatores antes expostos: a situação bibliográfica. O jovem de 18 a 25 anos (é, mais diretamente, desta geração que falo) não possue ainda suficiente sedimentação cultural para se arriscar a opiniões de caráter crítico sobre a maioria dos campos da ciência em geral e, principalmente, sobre o mundo moral. Ele percebe ou deveria perceber que é preciso uma revisão total, uma nova síntese para a qual talvez possamos apenas colaborar. Mas não é preciso ir tão longe para compreendermos a necessidade de considerarmos a nossa “situação”. Basta um exame crítico das nossas opiniões e veremos que, pelo menos, 80% delas não se apoiam em bases sólidas, são de caráter impressionista, ligeiras, determinadas muito mais por fatores de ordem sentimental que propriamente críticas. É que nos falta um sistema, uma perspectiva só possíveis nos períodos históricos chamados clássicos. Se fossemos sinceros conosco não sustentaríamos a quase totalidade dos nossos julgamentos de valor.

Os gêneros objetivos não podem transmitir um campo de tão grande intensidade subjetiva. Não são opiniões críticas, são sentimentos ligados a um complexo emocional não percebido mas atuante. Muito mais honesto, portanto, seria um ensaismo “situado” em que o sujeito (autor) e o objeto (assunto) estivessem numa relação de “eu” e “tu” e não “eu” e “ele”, aproximadamente como acontece no pensamento mítico nas relações entre o homem e a natureza. É preciso, a todo momento, situar as nossas opiniões. Muito mais que mostrar as coisas em si, mostrarmo-nos em relação a elas. Sabermos que não estamos falando de objetos fora de nós, mas de nós mesmo, ou de “tus”, mitos antes que realidades.

As características desse ensaismo seriam portanto: 1) uma preferênica pelas relações entre autor e assunto do que pelo assunto em si, 2) reconhecimento das várias dimensões em que nos situamos e suas influências na nossa visão do problema, 3) busca de pontos de vista mais próximos a esta situação como o de “vivência” em preferência ao livresco, 4) humildade no tratamento dos assuntos e, principalmente, nos juízos de valor.

Não estou, evidentemente, negando com isto a possibilidade de que alguns assuntos possam ser tratados pela nossa geração em gêneros mais objetivos e dum ponto de vista mais amplo. Sempre que isto for possível, deve ser feito, ou, aliás, deveria, talvez, ser o normal se não estivéssemos tão situados por uma problemática acima de nossas capacidades.

Ninguém negará, contudo, o valor documental desta espécie de ensaismo. Sua oportunidade na nossa época. Seu caráter sincero e ousado. Seu valor de uma auto-crítica constante e salutar para uma geração que não sabe onde vai mas pelo menos deve ter a suficiente ousadia e coragem de confessá-lo.



MURAL LITERÁRIO


Ana Maria Viegas

(Complemento nº 3 - Diário de Minas - 12 de Maio de 1957)


Quando, no ano passado, os jovens belorizontinos da revista Complemento tiveram a coragem de lançar o seu segundo número tão absurdamente vazio de conteúdo, impossível nos seria ousar qualquer esperança de um terceiro número mais promissor. Nessa época já foi notada por um dos redatores da revista Mural a absoluta “falta de sentido do grupo”. O mesmo redator ainda se admirava “de como, com tanta e tão pronunciada diversidade interna, conseguiram estes jovens reunirem-se e publicar uma revista”. O seu terceiro número já nos obriga a admitir que a mencionada diversidade interna entre esses elementos não é realmente tão inibidora, como à primeira vista pode parecer. Até pelo contrário. E ainda há entre eles muito de comum, muito de assustadoramente igual, de exaustivamente repetido, remoído. Esse muito é característica básica, verdadeira linha de conduta sobre a qual se desenvolve quase tudo de que se faz a revista. Isso notamos desde as primeiras páginas, quando um de seus diretores declara: “temos a considerar que acima de tudo somos jovens. Jovens um tanto envelhecidos talvez, mas sempre jovens”. Acreditamos que ele próprio já tenha chegado a tomar consciência de quão profundamente dolorosa é a sua declaração. Bem define o que na verdade os levou a se encontrarem , a se reunirem, e até mesmo a publicar uma revista no estilo Complemento. Não tencionamos em absoluto sugerir que seja apenas a idade o melancólico fator determinante dessa união que os impulsiona. Queremos chamar atenção sobre a desconcertante característica dessa idade em nosso século XX: o paradoxo da “juventude envelhecida”. Foi isso que levou Theotônio Júnior à pretensão de seu “Ensaismo Situado” (todo feito de observações e conclusões na primeira pessoa do singular), foi disso que se fez o depoimento de Heitor Martins em seu angustiante ceticismo, foi isso ainda que motivou o conto de Ezequiel Neves, a narrativa de Silviano Santiago, os poemas de Ary Xavier, Ricardo Salles, e até mesmo os de Pierre Santos e Floriano Vaz. Seria bastante tomar um desses escritos para identificar imediatamente a mentalidade de nossos “jovens envelhecidos”. Heitor Martins, por exemplo, termina seu depoimento no mais doentio e chocante pessimismo concebível no espírito de um jovem. Depois de expor tudo aquilo que “não somos” (nós jovens), inevitavelmente conclui: “Na base desta escuridão e desta ruína é que construimos nossos alicerces fragéis. Talvez estejamos apenas sustentando um mundo agonizante para uma nova geração - uma raça mais crente que nos destrua e explique”. O tema central do conto de Ezequiel Neves resume-se na constatação da “inutilidade das lutas, inutilidade dos gestos rumorosos, inutilidade dos dias e das noites”. Da narrativa de Silviano Santiago resta-nos a amargura daquele “mais um depois-do-jantar, mais uma noite, mais um dormir. Impossível escapar da corrente de situações”. Também os poemas estão cheios desse vazio, carregando todos aquela mesma conclusão de Ary Xavier:

e nada altera a geometria dos dias desiguais

(envelhecemos em torno desta mesa

quando a noite nos colhe como o fruto

é colhido pelo tempo)”.

O cansaço da vida, essa absoluta descrença naquilo de mais real, sobretudo para a juventude, é sem dúvida um sintoma tremendamente alarmante. Falar sobre o tédio é fácil, falar sobre o nada também não é difícil. Bastam-nos alguns recursos de imaginação e, neste caso, alguns recursos literários desde que se chegou á necessidade de criar uma revista essencialmente dedicada a esses temas. Mas superar esse tédio, preencher esse nada é coisa extremamente outra. Seriam honestos e leais os nossos jovens quando teimam em negar tôda a possibilidade de sublimação de seu carunchado ideal literário, e até mesmo toda a possibilidade de se viver, realmente “viver?”. Acreditamos que sim. Mas ainda temos a considerar que acima de tudo eles são jovens. Jovens amadurecidos à força, mas sempre jovens. O amadurecimento prematuro, quando desorientado e servil às tendências mais doentias da nossa natureza, impede a verdadeira e plena maturidade psicológica da personalidade humana. Diante disso explica-se tôda a linha de conduta característica à “geração complemento”.

Sob o ponto de vista estritamente literário a revista nos possibilita grandes esperanças. Percebe-se logo de início que há realmente uma preocupação de seriedade em seus diretores e redatores. Salienta-se a página de Roberto Campos, e aqui não encontramos nenhuma ressalva a ser feita. Naturalidade na expressão, fluidez de pensamento, autenticidade do ambiente criado, da personagem, autenticidade na própria angústia, na própria inquietude fazem de sua crônica uma página de incontestável valor literário. Já os ficcionistas Ezequiel Neves e Silviano Santiago oferecem-nos uma prosa um tanto artificial, embora de vez em quando nos deixem bem visível a sua capacidade de transmissão da atmosfera psicológica em que se movem essas personagens. Ary Xavier, ressalvando-se as tendências negativas já mencionadas, mostra-se essencialmente poeta quando nos transmite o seu depoimento. O mesmo sentimos no poema de Heitor Martins. Mas não compreendemos como se fêz permitir a publicação de material tão balofo, tão longe da poesia, como o “Poema Bissexto” de Floriano Vaz. E, embora também se intitulem “Poema”, temos ainda os jogos de palavras de Ricardo Salles, absolutamente execráveis. Entre os ensaios, felizmente se pode notar a honestidade e inteligência de Luiz Alves em seus “apontamento para um estudo das estruturas simétricas bilaterais no verso decassílabo”, e, sem dúvida, o nome de Maurício Gomes Leite merece igualmente ser destacado. Quanto ao resto, são contribuições mais ou mesnos passáveis; quando não caem nos chavões cansados e cansativos, escorregam para o vazio de conteúdo ou se prestam a confusas vulgaridades estílicas.

Do ponto de vista técnico há bastante a desejar. O papel não chega a ser do pior, nem a apresentação gráfica é das mais desanimadoras. Não deixam, entretanto, de constituir detalhes lamentáveis. Certos erros tipográficos, que podem ser notados com relatica frequência, tornam-se inadmissíveis no corpo de uma revista que pretendia aquela seriedade. Mencionamos esses aspectos (de certo modo secundários) apenas por se tratar de deficiências facilmente corrigíveis, a serem evitadas em próximos números da revista. E, terminando, acrescentaremos uma especial menção a Augusto Degois que, no desenho da capa, soube usar recursos estéticos de felicidade apreciável.






UMA CRITICA E UM PROBLEMA


Theotônio Júnior

O que uma Geração “É” e o que “Deve ser”

(Diário de Minas - 16 de Junho de 1957)



Há muito esperávamos que alguém se desse ao trabalho de uma crítica à Revista Complemento, não só aos seus colaboradores em particular como também à sua orientação geral ou melhor, à nossa geração.

A srta. Ana Maria Viegas deu-se a êsse trabalho com grande felicidade enquanto constatadora, infeliz que foi na sua crítica (1). É pela seriedade que imprimiu ao seu comentário, por ter atinado com o que já atináramos sem contudo compreender bem aquilo que percebeu, é por isto tudo que lhe dedicamos esta resposta.

Lamentável engano cometido por tantos é o de acusar o 2º número da revista de “vazio”, para outros eivado de espírito de panelinha e outras acusações. Para êstes ter menos matéria é ter menos valor. Os contos de Silviano Santiago e Ezequiel Neves valem por toda a revista. Os depoimentos mostravam uma tomada de posição diante de “nossa” problemática. Posição ainda indecisa mas fácil de observar-se se em vez das apresentações dos depoentes se tivesse lido seus depoimentos. Tudo que a srta. Ana Maria constata agora já estava lá, naquele caluniado 2º número de revista. Estava nos depoimentos, nos contos ou nos poemas, faltava, modéstia à parte, que se pusesse a claro como se fez no 3º número (não só no meu artigo como no depoimento de Heitor Martins) êste “muito de comum”.

É assim que achamos um pouco tardia a constatação que tínhamos “muito de comum”, pudera: não fôssemos indivíduos de um mesmo século, uma mesma idade, uma mesma cultura e civilização. Ainda um tanto deslocada e sem maior mérito é a anotação de que meu artigo era na 1º pessoa, pudera: se o que propunha era exatamente isto: “tus” em vez de “êles”, isto é, deveríamos ou só poderíamos falar de nós mesmos.

Inteligentes no entanto são suas observações sobre o nosso “desespero”, exemplificando-o com grande propriedade nos vários trabalhos da revista.

Até agora só concordamos com a srta. Ana Maria, onde portanto a discordância, o problema?

Depois de confirmar e acrescentar elementos novos àquilo que expusemos, a articulista comete o grande engano, o de julgar como atitude doentia a coragem intelectual de enfrentar frente a frente a nossa problemática. Diríamos mesmo que atitude mais “sadia” não poderia existir, creio não haver nada de mais sadio que a consciência de si mesmo.

Não poderíamos nunca insistir na nossa saúde mental (2) e ao mesmo tempo propor um ato doentio de fuga à nossa problemática. E é fuga e doença buscar, como pede a srta. Ana Maria Viegas, “superar este tédio (3), preencher (!) este nada”.

Para Karl Jaspers é exatamente a consciência de nossas “situações limites” (a morte, a culpa, a submissão ao acaso) que é a verdadeira atitude filosófica e humana. “Às situações limites reagimos, ao contrário, velando-as ou, quando nos damos conta realmente delas, com o desespero e com a reconstituição: chegamos a ser nós mesmos numa transformação da consciência de nosso sêr (4)”.

Ele como todos os desesperados compreende sua “situação”.

Portanto, o desespero não é para nós uma atitude psicológica, fruto da idade ou do não amadurecimento como diz a srta. Ana Maria, o desespero Deve Ser para nós um valor moral. O desespero é a única atitude honesta para a nossa geração.

Mas o que há de importante nisto tudo é que após constatar a nossa “situação” como fez a srta. Ana Maria, é preciso compreendê-la, isto é, inserí-la num complexo maior.

A falta de esperança ou o desespero não implica num pessimismo ético, nem psicológico, nem social. Sabemos que precisamos de agir, viver, e (nisto não vai nenhuma fuga, é simplesmente uma necessidade inalienável), sabemos ou devíamos saber, eu, a minha geração e a srta. Ana Maria também, que precisamos fazer uma revisão de valores. Mas sabemos também que não podemos tirá-los do nada, fabricá-los. Estamos portanto na “fronteira do ético”, e não é num artigo de jornal que devo aprofundar este assunto.

Neste momento é preciso tomar uma atitude diante da nossa situação e é este o grande problema que é preciso somente constatar aqui, ficando a sua compreensão para próxima oportunidade.

Uma coisa podemos garantir: ela não pode ser de mera acomodação burguesa, não pode ser um preenchimento de tempo, uma sublimação do tédio. Ela tem que ser mais , tem que se justificar num complexo humano, tem que estar consciente da nossa situação e só dela, isto é, do nosso desespero, pode partir. E tudo mais é fuga e doença.




NOTAS:




(1) Ana Maria Viegas - Complemento nº 3 - in Diário de Minas, de 26/05/57.

(2) Veja-se o meu artigo: De um Ensaismo Situado, Complemento 3, pág. 3: “da tarefa antes de tudo” sadia “da revisão de valores”.

(3) E aqui há um engano, não é o “tédio” ou a presença do “nada” o nosso problema, é, ao contrário, o “desespero” ou a presença ou angústia do “tudo” (Deus?) necessitado e sempre presente.

(4) Karl Jaspers - La Filosofia - Breviarios del Fondo de Cultura Econômica - México, 1953, pág. 17.





UMA CRITICA E UM PROBLEMA


Theotônio Júnior

(Contribuição para um debate)


Ainda não ficou claramente estabelecido o que pode representar o desespero como atitude filosófica. Na resposta que demos à srta. Ana Maria Viegas (1) deixamos vagos alguns pontos que julgamos essenciais para a compreensão da atitude do desesperado diante do mundo.

A acusação de que no desespero intelectual, melhor, filosófico, vai alguma manifestação doentia parte da consideração de que ele tem uma consequência existencial negativa e pessimista.

É exatamente isto que queremos mostrar: que a falta de esperança na possibilidade de compreensão do mundo não conduz necessariamente a um pessimismo no plano existencial.

E isto precisa ficar bem claro. É por este motivo que nos utilizamos de um trecho de diário, que como coisa relativamente íntima não se incomoda de ter o máximo de sinceridade.

É bom também que, como contribuição a este debate, seja citado este trecho para que não possa ser julgada a nossa atual atitude de mera defesa, postura forçada para se defender de uma acusação, isto porque tem quase um ano de antecedência a este.

Assim sendo, aqui está este pequeno trecho que espero possa mostrar decididamente o erro da confusão entre um desespero e pessimismo ontológicos e existenciais.

Em mim mesmo. Teria me realizado como pessoa humana, como homem enfim? Não, e bem sei que isto seria tarefa de séculos. Mas teria explorado o máximo do que o homem possui atualmente em suas mãos? Até onde esta exploração é legítima, até onde posso estabelecer seus limites e principalmente, quais são estas posses, que realizamos? O terrível da sinceridade é que nós temos que viver e sofrer a possibilidade do erro. Seria tão fácil aceitar algo, confiar nele e solucionar assim todos os problemas do desespero.

Realizar-se como pessoa humana, atualmente, não seria esta atitude de humildade e sinceridade diante de si mesmo e do mundo? Não seria a recusa a aceitar qualquer coisa que não seja absolutamente provável? Não seria enfim este estado de suspensão de juizos até que se possa estabelecê-los? Mas a existência não espera juizos e qualquer circunstância exige uma atitude como agir então: com o mais provável? Com o bom senso? Com a revelação? Será preciso uma exigência inteira para se avisar o problema mais de perto. Aquele que de fato se realiza como ser humano, formalmente falando, é o que busca incessantemente, com desesperadora sinceridade e largueza de espírito o que é realizar-se como pessoa humana. Parece uma contradição mas ao mesmo tempo a verdade. Por isso não me julgo admirável como ser humano, porque fujo das verdadeiras experiências: o sofrimento e a dor física que só seriam encontrados na pobreza, na insegurança econômica, na aventura. Mas estas experiências não podem ser forçadas o que resultaria em artificialismo, e serão muitas vezes inúteis se não houver preparação para elas. Nem se pode passar por elas como um turista muito interessado, somente. E até onde pode aquele que não as viveu como eu, julgar de seu valor ou nessecidade? Para isto temos a experiência alheia, a experiência de cada um em individual que não pode ser desprezada pois cada indivíduo é diferente de todos ao mesmo tempo que é igual a todos. E não há somente a experiência individual, há a social: a das nações, culturas e civilizações já vividas e viventes. Portanto, a própria possilidade de vir a existir, de continuar, anula a possibilidade da plenitude e do absoluto. Por isso a procura é o procurado e o procurado a procura. Não seria Deus o objeto de toda a procura, ele como o infinito: passado, presente e futuro é o objeto final, inatingível? E inexistente senão como indivíduos e povos isolados ainda a atingirem a si mesmos. O desesperado não deve anular a vida, não foge dela e sim enfrenta-a cara a cara. Nem tão pouco impede a reforma social, a luta de classes, mas nela com o triste conhecimento de que não passa de uma etapa a mais a vencer em busca de novos problemas advindos da solução dos antigos.

A idéia de futuro imediato não lhe deve ser sem importância mas ele há de sofrer sempre a idéia do verdadeiro futuro que nunca alcançará”.

É claro que hoje a perspectiva mudou em alguns sentidos graças a uma maior sistematização daquelas idéias. O assunto foi muitas vezes repensado e aquelas postulações ainda legítimas em muitos pontos foram se esclarecendo e ampliando.

As perspectivas abertas pela leitura recente de outros livros, principalmente o de Karl Jarpers (2), que resumimos em artigo para o suplemento da “Folha de Minas” (3), esclarece-nos muitos dos pontos duvidosos, muitas imprecisões mais terminológicas que propriamente de observação.

É claro que não pensamos ter esgotado o assunto que merece um estudo muito maior, mais calmo e pensado se bem que urgentemente. Isto fica para outra ocasião enquanto o nosso colega e amigo Heitor Martins (4) continua a abordar o problema neste suplemento.

É preciso esclarecer que tudo é passível de revisão exceto a atitude inicial do desespero. Desta ninguém poderá negar a autenticidade e o mérito.





NOTAS:



(1) Theotônio Júnior - Uma Crítica e um Problema, o que uma geração “é” e o que “devemos ser” - in Diário de Minas, 09-06-57.

(2) Karl Jarpers - La Filosofia - Breviários del Fondo de Cultura Económica - n. 77 - México, 1953.

(3) Theotônio Júnior - Uma Introdução à Filosofia (I).

(4) Heitor Martins - Situacionismo e Autocrítica - In Diário de Minas, 02-06-57 e ainda Valor e Valorização que deve sair neste número. Deste suplemento.




CARÊNCIA DE VALORES E “VALORIZAÇÃO”


(Heitor Martins - Diário de Minas - 16 de Junho de 1957)



Em artigo anteriormente publicado levantávamos o problema dos valores para uma tentativa de crítica da atitude adotada por alguns colaboradores da revista “Complemento” e uma justificação de seu caráter positivo. Naquele artigo, entretanto, muitos deliberadamente deixávamos em suspenso e mesmo em viva antínomia em nossas afirmações a situação real do problema axiológico: faltam-nos valores ou seleção de valores? Em termos mais explícitos perguntaríamos: estamos num mundo onde não existem valores ou chegamos a um momento historico de crise, a uma das repetidas bancarrotas de valores, como diz Astrada? Tendendo mais para o carater sociologico, tendíamos igualmente para a afirmação da falta de seleção. Os valores existiriam, apenas alguns não correspoderiam mais a nossas necessidades, sendo preciso então um novo selecionamento, uma revisão, para que o homem pudesse construir algo sobre esta base. Levando-se o problema a uma generalização maior, é, fugindo ao nilhismo “sociologístico”, teriamos a colocação do mesmo em outros termos e a solução sociologica se provaria bastante falha. A crise não está na escolha dos valores, está antes em sua carência, derivada da falta de sentido de absoluto (necessidade primordial do valor (1) do pensamento moderno. O homem sente-se, pela primeira vez talvez, livre para discutir e aceitar ou negar qualquer solução filosofica. A liberdade do homem cria o redemoinho em que desaparecem os valores.

Quase punhamos como epígrafe desta conversa de mesa a consideração de Sartre: “A liberdade e o terror”, terror de se sentir extremamente fracassado em algo de grande, carente de uma organização superior que nos justifique frente a nós mesmos e ao mundo. Esta liberdade é que nos fere no momento em que descobrimos que nossa ação pode ser efetuada em várias modalidades diferentes sem que isto afete fundamentalmente a vida mas apenas modifique a situação em que nos movemos, destruimos sistematicamente todos os valores estáveis em que criamos e com os quais faziamos a base de nossa forma de vida. Outro sentido não tem para nós à afirmação do Zaratustra nietzscheano de que Deus já morreu. Deus aqui é o valor em seu sentido maior, a base axiologica do universo. Com Deus morto, isto é, com a liberdade dada ao homem de por em xeque a própria validade do valor (estado de “terror” para Sartre), movemo-nos em um mundo sem valores. Sobram-nos, entretanto, algumas valorações pelo salto: o absurdo (principalmente em Camus), o compromisso sartreano ou o retorno ao espírito medieval, através da ciência. Três soluções que só nos acompanham no início do caminho, infelizmente, é que servem apenas para tornar mais fundo e irrealidade (2) do universo que nos cerca inexoravelmente.

No sentido de quebrar esta irrealidade o homem é obrigado a enfrentar o caos. Não é suficiente para sua auto-realização a aceitação de um conceito de ordem e viver por ele: isto é antes o signo de uma covardia injustificável. Poderíamos supor mesmo uma solução profundamente religiosa (3): é necessário o pecado primordial para haver a salvação, só que aqui a salvação se faz pela aceitação do pecado em suas últimas consequências. O bem e o mal não seriam mais que expressões de uma força qualquer que entenderia ambos dentro de uma medida idêntica.

Frente a estas considerações a civilizações burguesa em que uma piada ou uma tremenda - prova de falta de caráter de seus membros. A necessidade de viver os problemas - e não só de pensá-los - submeteria o homem a uma obrigação inelutável de autenticidade.

Mas que valores terá este homem livre? Os valores lineares do momento que vive apenas, uma crença absoluta em sua própria realização pura, sem nenhuma pela. Para isto, para este homem russo como o chama Hermann Hesse, seria necessário, todavia, um profundo carater otimista, uma alegria nietzscheana para com a vida. Talvez apenas o medievalismo científico (4) que nos ameaça pela frente possa levar a este homem primitivo. As linhas do humanismo nos levariam antes à constatação da vulnerabilidade do homem, a uma ética de renuncia e disciplina (mas que sem Deus seria apenas uma variantes do absurdo de Camus). Lembramo-nos agora de um romance de Hesse, Siddharta, no qual o herói, de vida monacal, tenta desesperadamente chegar à perfeição, considerando, entretanto, que os conselhos e as vidas dos outros não o ajudavam em nada. Volta então à vida mundana, enriquecendo-se e amasiando-se. Com isto também não consegue realizar sua própria vida: cada vez se senta mais longe dela. Retorna a solidão habitando à beira de um rio e vendo-o passar. Como o rio que passa é a vida: um fluxo eterno, apenas, sem justificação, sem ética, sem derrota.

Não se lembrará aqui o leitor do velho Santiago de “The old man and the sea” que afirma: “O homem pode ser destruido mas nunca derrotado”. Este estado de aceitação do desespero que aparece em outras personagens do mesmo Hemingway e é mesmo uma constante na literatura moderna. Perece ser a única solução humana encontrada até o presente para o problema deste mundo sem valores. Alguns autores transformam esta aceitação num ato de alegria vital, como o faz o próprio Hemingway, em “The sun also rises”, com o personagem impotente vendo sua mulher ser obrigada a procurar outros homens para sua satisfação sexual, mas sem se criar maiores problemas, chegando mesmo a levar uma vida agradável. Viver, mesmocom o sentido de continuar, se se o faz conscientemente, é um ato de liberdade que livra o homem da morte diariamente. É como uma tourada (e o próprio Hemingway se considera integralmente vivo ao toureiro) em que se ganha a vida de minuto a minuto, um desejo de devorar a vida em todas suas possibilidades. Talvez por isso mesmo haja uma tendência ao toureiro na literatura moderna.

Com isto voltamos ao tema dos valores, agora com uma pequena base: não será esta autenticidade, esta verdade, esta justiça absurda (Camus), esta coragem (Hemingqay), este compromisso (Sartre), apenas nomes dados a uma mesma constante existencial, funcionando apriorísticamente como valor (é, pela valorização através do salto, seu valor lhe é emprestado)? Fundamentalmente qualquer um deles não é a constatação da necessidade de continuar, superada a liberdade. O terror, o caos? Formas de continuar, para ser mais exato, vulneráveis como o é a própria vida, sem sistemática, sem ordem, sem justificação maior, já que, como valores, apenas valem, não são.

Mas, como dissemos anteriormente, estas soluções apenas nos levam até o meio do caminho e abrem mais fundo o sentido de irrealidade do universo circunvizinho. O empréstimo do caráter valioso que podem ser postos em xeque a deuses mortos ou moribundos. As estátuas que adoramos são falsas e não se ultrapassam em deuses verdadeiros.

Socialmente esta crise tem proporções idênticas. Vivemos numa sociedade inteiramente falseada, não só como coletividade mas mesmo em suas expressões individuais. Vejamos alguns exemplos banais: pelo menos 90 por cento de nossos provérbios populares contém máximas imorais: a maioria de nossas mães de família preferiria ver seus filhos casados por interesse financeiro que por amor: entre uma atitude livre e perigosa e uma condescendência com o poder poucos titubeariam em ser pela segunda. Não tomamos aqui uma atitude à lá Marquês de Maricá para reprovar estas posições, embora o devéssemos fazer: elas sempre existirão depois de nós, crescendo, florescendo e produzindo à sombra das religiões e das morais vigentes ditas sociais. O falseamento moral de um Nietzsche em “A Genealogia da Moral”, tão virulentamente combatido em teoria, não é diariamente aceito na prática e pregado em nossa sociedade? Uma análise mais honesta nos irá mostrar, ainda individualmente, tomando estas mesmas posições ambíguas. O homem continua sua aventura humana apenas, bom e mau, moral e imoral, tudo ao mesmo tempo, confuso e confundido, sem justificação e sem meta.

Neste sorvedouro de valores, aqui onde se torna impossível criar uma nova escala que nos seja fiel, como levantar as bases de uma ética? A pronuncia, saltos, epokhés, e não se sabe quantas outras soluções de momento, pseudo-justificações que apenas façam com que o homem continue, continue até uma nova crença e possibilidade de valorações mais estáveis.









(1) A seguir falaremos sobre o problema do chamado “valor relativo”.

(2) Quando falamos de irrealidade nos acercamos meramente ao valor metafísico do termo. O sentido de irrealidade psicológica, entrando no campo estrito do bom senso, é apenas um sintoma de desequilíbrio mental. Tal diferença, entretanto, quase se confunde na prática. Comparece, por exemplo, as descrições da sensação de irrealidade em “La Nausée” de Sartre e no “journal d’une Schizophrère” da psicanalista M.A. Secheye. Ao significado metafísico seria preferível chamar irredutibilidade.

(3) Cumpre lembrar que os termos da filosofia moderna acercam-se mais dos termos religiosos que propriamente do filosóficos.

(4) Talvez nunca tenha estado o homem tão às bordas de um obscurantismo total como no momento presente. A crença na solução científica, embora isto pareça um absurdo, leva o ser humano no roldão de uma avalanche irrefreável. Veja-se por exemplo, o problema da liberdade frente à ciência: no último século cria-se na inexistência da liberdade, no determinismo cego: neste século Heisenherg nega a posição anterior. Pela ciência, o homem do século XX é livre! Mas como será o homem do século XXI? Pobre conhecimento o que viver na base desta Perpétua mudança!



JUVENTUDE ENVELHECIDA


(Ana Maria Viegas - Diário de Minas - 16 de Junho de 1957)


O progresso científico, as lutas à guerra fizeram do século XX a época da desintegração, época de incoerência e desespero. Daí o sem núnmero de soluções criadas que tem aparecido: energias poderosas que se contrapõem destruindo-se, ou que, na complexidade de situações, acabam por se misturarem inutilizando-se. Na realidade, só vêm agravar ainda mais o caráter angustioso da nossa geração em pânico. É difícil descobrir onde está a verdade, onde está o erro. Vivemos num clima de absoluta insegurança, constantemente assaltadas pela ameaça das verdades que mentem e das mentiras que dizem a verdade, segundo a perfeita caracterização de Jacques Maritain (1). A juventude do século XX é também, inevitavelmente, uma juventude paradoxal. E, se de um lado é chocante verificar a presença dos jovens de matéria plástica e sangue coca-cola que ostensivamente povoam as nossas avenidas - de outro, é necessário constatar (em sua reduzida importância numérica, mas capacidade de influência admirável e consequente responsabilidade) a chamada juventude envelhecida, tipicamente produto de nossa época.

Em anotações publicadas por este jornal (2), tivemos oportunidade de abordar o mesmo tema quando, em crítica à revista “Complemento”, observamos a orientação da equipe de seus jovens diretores e redatores que se tem revelado como qualquer coisa interessante entre nós. Mas parece que os jovens não se sentiram bem criticados. Logo tivemos a resposta de Theotônio Júnior (3), além dos esclarecimentos de Heitor Martins (4) e, mais longiquamente, as considerações de Fritz T. De Salles (5). Pelo seu teor, verificamos que estas últimas considerações não nos diziam respeito, é só nos deteremos aqui sobre os dois outros trabalhos. Tentaremos agora explicitar o que já ficou estabelecido em nossas anteriores anotações.

É bem evidente o ponto de discordância entre nós. Ao constatarmos o tédio e o vazio profundo em que se perdem os jovens da revista “Complemento”, acabamos por aí enxergar um amadurecimento prematuro, forçado e caótico. E concluimos que esse amadurecimento prematuro, por ser desorientado e servil às tendências mais doentias da nossa natureza, impede a verdadeira e plena maturidade psicológica da personalidade humana. Até essa conclusão nada mais fizéramos do que apontar onde estava esse tipo de servilismo e quais eram essas tendências doentias a que nos referíamos. São elas o masoquismo, a complacente morbidez entre esses jovens, tendo como consequência o desagradável egotismo visível em todas as suas produções literárias. Esse egotismo é fato por eles mesmos considerado e admitido.

Heitor Martins, em seu artigo já citado, declara: somos obrigados a falar de nós mesmos num desnudamento abissal. Theotônio corrobora, tanto em seu artigo da revista (6) como em sua resposta à nossa crítica a mesma declaração de Heitor. Mas, acompanhando sempre essa inevitável constatação, não pode deixar de aparecer aquilo que é mais importante para eles: a afirmativa peremptória de que não existem tendências doentias nem pessimismo ou negativismo no grupo de “Complemento”. A revista é realmente sadia sua orientação mais profunda. Esse falar de si mesmo é batizado e justificado por Heitor Martins simplesmente com a palavra honestidade. Para Theotônio Júnior esse tipo de honestidade significaria uma desabusada coragem intelectual de enfrentar - (e aqui um pleonasmo, talvez de reforço) - frente a frente a nossa problemática.

Impossível negar toda a necessidade imperiosa e intransigível dessa coragem a que as refere Theotônio Júnior, e o confessá-lo e todo preço é realmente uma prova da honestidade proclamada por Heitor Martins. Por aí notamos quanto são bem intencionados os jovens de “Complemento”. Resta saber o como realizam essa intenção fundamentalmente tão sadia. Ora, para essa realização, escolheram eles o campo literário ou, mais objetivamente falando, sobretudo a revista “Complemento”, agora em seu terceiro número. Esse como foi o que apareceu nas páginas da revista. Só ele poderia ter sido objeto de nossa crítica, e não as intenções que o motivaram ou as conversas particulares do grupo a que se refere Heitor Martins no início de seu artigo. É curioso precisar de esclarecer a esses jovens que, para a nossa crítica da revista, só poderíamos contar com a revista e mais nada. E nela o que percebemos já foi dito e agora está sendo repetido. Nessa repetição torna-se imprescindível abordar o problema da juventude envelhecida, que já caracterizamos como produto dos mais sérios desta época de desintegração. Nunca como neste século o homem se tornou pungentemente um problema para ele próprio, nos diz Heimsoeth com toda razão. “E este problema atingiu para a nossa época uma tal acuidade, uma tal extensão, que época alguma anterior se lhe pode neste ponto comparar” (7). Daí este sentimento de mal-estar que nos domina a todos (tédio, angústia ou desespero), já sofrido desde o século XIX sobretudo por Kierkeggard e Nietzsche, Heidegger e Jaspers, além dos contemporâneos representantes da escola francesa Gabriel Marcel e Charles du Bos, Sartre. Surge então o problema do ser e do sentido da vida, como preocupações fundamentais para o homem atual. Diante desta situação absurdamente trágica da problemática da existência, em tudo transformada, renovada e ampliada, aparece uma inevitável desconfiança contra a herança filosófica dos séculos passados e a necessidade insuperável de uma revisão de valores (também mencionada por Heitor Martins e Theotônio Júnior em seus artigos). A fenomenologia de Husserl não teve igualmente outra determinante senão esta necessidade tão sentida pelos existencialistas e ontologistas. A mesma angústia preside ainda as preocupações metafísico-teológicas dos neotomistas, assim como presidiu o idealismo de Hegel ou o socialismo marxista. Em tudo: revisão de valores. Os processos de revisão e suas orientações é que variam e divergem.

A nova geração (integrada por nós) foi abrupta e estúpidamente jogada em face de todos esses problemas, num estado de absoluta solidão. Apareceu uma juventude coca-cola, alheia ao que na realidade se passa, e, a seu lado, a juventude mais vibrante, mais inquieta, mais atual em sua luta pela existência em profundidade. É esta última que tem esse desconcertante caráter de juventude envelhecida.

Com o progresso científico todas as portas nos foram abertas para tudo. Dissecou-se anatomicamente o homem, sem a menor cerimônia, e nós mesmos nos vemos como cadáveres em exibição, disponíveis a especulações e a toda sorte de constatações, nenhuma explicação se anuncia e nada nos apontou o sentido desta vida tão inescrupulosamente exposta. Estamos aqui jogados em dolorosa procura de um Absoluto que nos dê a significação de nossa luta permanente. Logo, essa juventude envelhecida logicamente deve sofrer e sofre de verdade. É nihilista, é desconfiada a apreensiva em seu idealismo. Mas, se não pode segurar e manejar a chave de todas as coisas, pode entretanto acreditar na existência dessa chave, com humildade e sem pretensão. Nossa miséria é tão velha quanto o mundo, embora mais intensamente seja agora sentida. Nossa relatividade em tudo é gritante. E essa própria relatividade já demanda alguma coisa de mais estável, de mais intocável, de perfeito verdadeiramente, para que possa afinal existir. O que não concebemos é o debruçar cansativo e insistente sobre a miséria da qual tomamos consciência e que nos inquieta. Miséria e sofrimento remoídos e cultuados (em si e por si mesmos), isto sim é doentio, é masoquismo. E foi o que percebemos através das páginas de “Complemento” e que julgamos como atitude contraditória numa juventude que deve reconhecer a sua responsabilidade em face da própria vida. Foi contra isso que nos insurgimos, apenas. Esse problema do “eu” perdido, misturado, emaranhado ao prórpio “eu” é filosofia da vida por demais estéril. Jarpers já haiva implicitamente chegado a essa conclusão quando propôs a clarificação da existência, imprimindo assim um caráter mais dinâmico à sua filosofia existencial. Sua dialética abrange além do próprio Eu e seu mundo circunjacente de vontade e liberdade, também as dimensões ou maneiras como participa na vida e no espírito esse mesmo Eu em comunicação com os outros eus e na história” (8). Gabriel Marcel ainda é mais explícito: “L’etre centré sur lui-même est indisponible; je veux dire par là qu’il demeure incapable de réspondre aux appels de la vie, et je ne vise pas seulement ici l’aide qui pourra lui étre demandée par des malheureux. Il ne sera méme pas capable de sympathiser avec eux, ou simplement d’imaginer leur situation. Il reste enfermé en lui-même, dans sa chétive expérience qui forme autour de lui une coquille qu’il est incapable de briser” (9). O ser, nesse estado de encrustamento em si próprio, perde a noção de sua responsabilidade em relação aos outros e acaba perdendo também o sentido da realidade. Torna-se um desajustado. Por isso concluimos que o servilismo a tendências masoquistas impede a verdadeira maturidade psicológica da personalidade humana, ainda que sejamos jovens de cem anos.

Depois de tudo o que já foi dito, julgamos bem esclarecidos os pontos de vista apresentados. Quando falamos em nossas anotações críticas da intransigível necessidade de superar e sublimar esse têdio que nos aniquila, não queríamos em hipótese alguma sugerir uma acomodação burguesa à situação da nossa época, como entendeu Theotônio Júnior. Muito menos sugerimos a procura de um lugar qualquer dentro da sociedade, naquele estado de verdadeira prostituição a que se refere Heitor Martins. Queríamos apenas relembrar a esta geração que é a nossa juventude inevitávelmente envelhecida e, mais particularmente, a este grupo que é “Complemento” - em plena consciência da atual problemática da existência humana - a nossa responsabilidade em face se nós mesmos e da sociedade em que estamos situados.


(1) Jacques Maritain, “Humanisme Integral” - Aubier, 1947 - pag. 7.

(2) Ana Maria Viegas, “Mural Literário” - Diário de Minas, Suplemento - 20/05/57.

(3)Theotônio Júnior, “Uma Crítica e um Problema” - Diário de Minas - Suplemento- 09/06/57.

(4) Heitor Martins, “Situacionismo e Autocrítica”-Diário de Minas-Suplemento- 02/06/57

(5) Fritz T. Salles, “A Geração Complemento” - Diário de Minas, Suplemento - 02/06/57

(6) Theotônio Júnior, “De um ensaismo situado” - Complemento nº 3.

(7) Heinz Heimsoeth, “A Filosofia no século XX” - Coimbra Editora Ltda -1950- pag.103.

(8) Idem, ibedem - pag. 112.

(9) Gabriel Marcel, “Le Mystére de l’Être” I - Aubier, 1951 - pag. 178.


DA NECESSIDADE DE CERTO RIGOR TERMINOLOGICO E INFORMATIVO.


(Heitor Martins - Diário de Minas)



O que existe e o que conta é o indivíduo, o indivíduo real que sou eu, com o detalhe incrivelmente minucioso de sua experiência, com todas as especificações da aventura concreta que a ele corresponde viver, a ele só e não a outro”

(Gabriel Marciel - Homo Viator)


Em artigo publicado no último número deste suplemento volta a srta. Ana Maria Viegas a tecer as mesmas considerações sobre a atitude dos redatores de “Complemento”, taxando-a de negativa e, agora, “masoquista”. Em seu atual artigo, mais longo que o primeiro, ressalta-se inicialmente a boa intenção da autora, sem dúvida alguma imbuída da melhor vontade de resolver o problema da atual “juventude envelhecida”. O que A.M.V. não diz , entretanto, é como deve ser resolvido este problema, ou seja, como “superar e sublimar este tédio que nos aniquila”. A nossa posição, segundo a articulista, é negativa, doentia, masoquista: mas que posição poderemos tomar, nós que estamos conscientes de nossa problemática e somos inteiramente cônscios da responsabilidade de ação do homem (não reconhecemos responsabilidade em face da sociedade em que estamos situados?).

Ora, se A.M.V. nega uma posição sem apresentar nenhum substitutivo, não poderemos jamais chegar a compreender o que ela deseja de nós. Seu atual artigo apenas repete, sem “explicitar” absolutamente nada, o que já dissera anteriormente e que fora objeto de esclarecimentos meus e de Theotônio Junior. O resto de seu artigo é meramente uma confusão generalizada de terminologia e de informações, confusão esta facilmente demonstrável até mesmo pela introdução de um esdrúxulo e inusitado tema ontológico que nada tem a ver com a problemática de superfície anteriormente levantada. O tema ontológico levaria - e isto é realmente certo até determinado ponto - a uma necessidade de “revisão de valores”, revisão esta que, para A.M.V., foi a determinante da fenomenologia de Husserl. Isto já é desconhecer mesmo o que é a fenomenologia!

Transformando em seguida a “revisão de valores” em angústia (pasmem os incrédulos!) a articulista declara taxativamente que “a mesma angústia preside ainda as preocupações metafísico-teológicas dos neotomistas”. Jacques Maritain, embora o desconheça A.M.V., é o primeiro a negar qualquer valor à angústia “como categoria filosófica” (1). E o chamado “existencialismo tomista”, decorrente das interpretações dos textos de São Tomás, feitas por Gilson e Maritain, estão em dimensões inteiramente diversas do que se conhece, comumente, por existencialismo, ou seja, a linha filosófica de Kierkegaard em diante.

A seguir A.M.V. lembra que devemos ter humildade suficiente para “acreditar na existência” do Absoluto, ou, em última análise, de Deus. E aqui confunde “acreditar na existência” com “acreditar na possibilidade da existência”, o que é coisa inteiramente diversa. Acreditar na existência de uma já é acreditar nesta coisa, resolvendo-se assim todos os problemas possíveis. E aqui mesmo vê-se que A.M.V. torce a interpretação para um campo de ação estritamente religioso: se houvesse crença em Deus não haveria problema fundamental de “revisão de valores”, o problema todo advem da possibilidade de sua não existência.

Em seguida A.M.V., como quem pôs de pé o ovo de Colombo, descobre (em grifo) as “dimensões” de Jarpers. Ora, não era isto mesmo, em sinopse, o que estava no fim do nosso artigo “Situacionismo e Autocrítica” quando falávamos nas duas posições fundamentais do homem? As chamadas ações incondicionais, levantadas por Jaspers, como remate e coroação do descobrimento do ser humano individual e de suas possibilidades, embora não o citássemos, já que esta é posição pacífica em quase todos os existencialistas e sua diferença é apenas de terminologia, estavam perfeitamente esclarecidas nas duas posições fundamentais que apontavamos. E o suicídio, para Jarpers, não é precisamente uma ação incondicional que aobrepassa a existência, como a ação religiosa na oração, no culto e no sacramento?

Um pouco abaixo A.M.V. chega-se com uma citação de Marcel sobre o “ser” ( aqui tomado exclusivamente no sentido do “existente humano”, o que não parece ser grande diferença para a articulista já que ela não dá por isto) incrustado em si mesmo, perdendo a noção de responsabilidade “em relação aos outros”. Se a articulista tivesse continuado suas leituras de Marcel veria que sua solução para o “desincrustamento” é a transformação da relação “eu e ele” em “eu e tu” (2), solução esta que, em termos de ensaio, fora aventada por Theotônio Junior em seu “De um ensaismo situado”. Isto para Marcel uma vez que outros filósofos existencialistas, negando validade ao “amor” marceliano, entram em campos semelhantes, como o da solidariedade humana em Sartre. O testemunho de Marcel, citado por A.M.V., passa a ser o contrário do que ela desejava, corroborando apenas o caráter “positivo” das proposições de Theotônio Junior.

Disto tudo o que fica claro é a verdadeira salada em que se meteu A.M.V., salada litero-filosófica da qual não encontra saída, a não ser chamando-nos a atenção para “nossa responsabilidade”, ou seja, concordando conosco. E fica também a constatação do desejo da articulista de reduzir em um mesmo sistema algumas tendências existencialistas com um neotomismo de colégio interno, redução esta inteiramente impossível nos termos em que está vasada. Disto decorrem atitudes temerárias como a de invocar o nome de Heidegger ao lado do de Charles du Bos, “abantesma abacial” não se sabe porque desenterrado, e misturar Maritain e Sartre numa mesma “angustia”. Acender uma vela a Heidegger e outra a Maritain pode bem ser a característica do que Theotônio Junior chama de “acomodação burguesa” e eu de “um lugar qualquer na sociedade”.







(1) Maritain, Jacques - “From Existencial Existentialism to Academic Existentialism” - Sewance Review, LVI, p. 226, Spring, 1948 - apud Kuhn, Helmut - “Encuentro con la Nada” - Editorial Sudamericana - Buenos Aires - 1953.

(2) Marcel, Gabriel - Prolegómenos para una Metafísica de la Esperanza - Editorial Nova - Buenos Aires - 1954 - (Esta a edição em castelhande “Homo Viator”).



A GERAÇÃO COMPLEMENTO

(Fritz Teixeira de Salles)

(Para Diario de Minas - 03 de Junho de 1957)


Diante de uma nova geração como esta de “Complemento”, chegamos, às vezes, a pensar que a única atitude realmente “pedagógica” que todo moço deveria assumir é exatamente o oposto daquilo que sempre fez: uma atitude de completo alheitamento frente ao problema social-filosófico do nosso tempo. Dirão muitos, inclusive os jovens de “Complemento”, que minha conclusão é quase reacionária. Talvez seja. Mas entre o alheiamento e a “participação” desses homens que crescem o que será mais revolucionário ou progressista? Em cada jovem desse grupo vemos sempre um choque: uma inteligência grande demais para tão pouca vivência. Quer dizer, o jovem sempre “culpa” as exigências de seu excesso de inteligência pelos fatos causados por sua falta de experiência. Sempre foi assim e suponho que será sempre assim.

Um fato novo marca cada geração. Este “novo” surge mesclado a uma série de constantes que se repetem em cada geração e depende do observador ou crítico perceber mais o “novo” que as constantes, ou vice-versa. Talvez na parcepção que tenhamos deste novo reside o valor ou justeza da nossa crítica. Isto é, na percepção deste elemento poderemos compreender o jovem. Mas dirá o leitor: compreender como e para que?

Acho que devemos compreendê-los para aprender com eles, o que todo velho detesta, mas poderia ser utilissimo a todo velho. Se uma geração é como já disse um filósofo - um estado de espírito e não um problema cronológico - então poderemos aprender muito com toda nova geração. Se cada geração que nasce é uma espécie de amostra histórica, ainda assim poderemos e teremos o que aprender com ela.

Na bravura heróica e desprotegida do jovem há uma lição de poesia tão repleta e densa em sua beleza animal, misto de desafio e de inconsciência que a velhice, ao contato com essa pletóra caótica de afirmações e interrogações, não poderá deixar de aprender.


XXX


No grupo “Complemento”vemos uma marca que o distingue fortemente de outros, como o nosso, por exemplo. É o signo da preocupação literária-esteticista. Ao passo que a minha geração e outras que a sucederam tinham na problemática científica sua preocupação máxima de carater fundamental, os jovens do “Complemento”, mesmo quando se dedicam a certos estudos de tipo científico, o fazem com a finalidade e o espírito puramente esteticista. Gostam do jogo de palavras sem grande preocupação com a existência ou não de conexão muito explícita entre essas palavras e seu conteúdo. Aliás no Brasil dos nossos dias - devido à superestrutura política e sua efervescência - as palavras mudam de conteúdo quase que semanalmente.

Levados pela preocupação científica que talvez tenha sido influenciada pelo século XIX, mas que foi grandemente acentuada pela eclosão industrial do País, os jovens do nosso tempo se aproximaram do marxismo, onde viam antes de tudo - um método de análise, certo ou errado, mas um método baseado exatamente na realidade histórico-social. Pois tudo o que Marx afirmou foi tirado ou demonstrado social e historicamente. Daí as correções sucessivas que os próprios textos de Marx vem sofrendo, da mesma maneira que os princípios da medicina estão saindo revistos incessantemente.

Por exemplo, Marx disse não ser possível a revolução em país semi-colonial. No entanto foi possível a revolução na China.

Pois bem. No artigo de Theotônio Junior, número 3 de “Complemento”, artigo que é uma intelignete e honesta auto-crítica, há afirmações como esta: - “o comunista tenta fazer aquela ascensão completamente afastada da realidade histórica, social e política”.

Será? E como é que consegue tão eficientes resultados? Isso não entra nas cogitações do articulista. Todavia é bom considerar que um “dogma” sem base na realidade histórica e social, não venceria uma revolução como a chinesa, contra uma cultura milenar e o apoio econômico de uma potência como os EE.UU. E não se pode falar em apoio russo, porquanto as diretivas russas para a revolução chinesa resultaram em fracasso: 1.927 (Massacre de Cantão) e em 1.947, Stalin foi contra a revolução. Apesar disso ela foi feita e vitoriosa. Talvez a China seja uma realidade histórica “afastada da realidade histórica”.

Dizer que o marxismo se abstrai da realidade histórico-social me parece um pouco forte. Seria o mesmo que dizer: a higiens se afasta da profilaxia.

Outra demonstração concreta do esteticismo atual é o comportamento do jovem de hoje com relação à psicanálise. Entre um livro de crítica literária psicanalítica - por exemplo - ou um livro do próprio Freud, preferem o primeiro e lhe darão maior importância. Os livros científicos e por isso não interessam. Mas não chegam a dizer que psicanálise é um dógma, porquanto esta não apresenta um interesse de classe tão agudo. Qualquer problema que sugere um sentido de classe muito ostensivo, desagrada o jovem “complemento” que o considera excessivamente político, supondo-o um desvio da sua preocupação estético-literária. E, no entanto, esta última também está repleta de interesse político, embora o jovem nem sequer o perceba.



XXX


De tudo isso concluimos que este esteticismo foi causado, em primeiro lugar, pela influencia americana, com seu escapismo e seu especialismo que também é uma forma de escapismo. E em segundo lugar foi causado pela ausência de experiência; o excesso de inteligência sem a correspondente vivência. Esta forneceria a conexão entre a inteligência e a realidade.

O moço de hoje tem uma indiferença espantosa por qualquer problema nacional e o surto profundo de nacionalismo que abala toda a opinião pública brasileira, é como que ignorado por completo pelo jovem “Complemento”. Para este, Fernando Noronha é problema do Japão ou África, não nosso, pois Fernando Noronha não é propriamente um capitulo da Estética, ou um canto do racista Pound. Em consequência, o conceito de ética desses jovens é completamente diferente do mesmo conceito das gerações antecendentes. Para estas, toda posição era uma questão de honestidade maior ou menor. Para o jovem de hoje, seriedade intelectual é uma questão estética; o que para nós era profundamente oportunista.





XXX



Afirma Theotônio Junior: “Que um jovem que lia revista em quadrinhos passe de repente a ler tratados científicos, mesmo didáticos, e possa compreendê-los, é uma exigência absurda”.

Entretanto, esse mesmo jovem pode ler e compreender um romance de Faulkner. Suponho que qualquer compêndio científico ao lado de um romance de Faulkner é uma espécie de história em quadrinhos.

Contudo o artigo do autor “De um Ensaio Situado”, como depoimento de um jovem, é admirável em todos os sentidos, principalmente por ser vasado em saudável auto-crítica.

Outro trabalho deste número de “Complemento” que merece toda atenção é o artigo de L.C. Alves, “Apontamos para um estudo das estruturas simétricas bilaterais no verso decassílabo”. O autor revela notáveis conhecimentos dos mais modernos estudos de estilística, realizando interessante análise de estrutura de verso e do rítmo no decassílabo. Lamentamos apenas que não tenha, partindo dos detalhes, estendido suas observações, para chegar a um campo mais geral do problema do ritmo em poesia. Isto é, seu trabalho nos sugere algo que acabou antes. Mas de qualquer modo é um estudo do maior interesse, revelando-se Luiz Carlos Alves, com ele, perfeitamente aparelhado para o dificílimo ofício de crítico de poesia.

Segue-se o trabalhjo de Flávio Vieira sobre o romancista carioca Lima Barreto, uma das figuras mais possantes da literatura nacional que agora retoma seu lugar de destaque em nosso panorama intelectual. Este é um artigo de divulgação mais que razoável.

Apresenta ainda o nº 3 da revista, contos, crônicas e vários poemas, além da continuação do artigo de João Maurício Gomes Leite sobre cinema e literatura americana. Este também é um estudo curioso e bem feito. Apenas observamos que se Wyler discordava de Dreiser sobre os problemas do livro deste, não o deveria transpor para a tela por mera questão de honestidade.

Além disso, há uma disparidade entre Driser e Wyler tão evidente (um romântico, o outro realista), que seria impossível um ajustamento entre a obra de ambos. Falando sobre “Rastro de Odio”, Maurício Gomes Leite declara que Ford não é fiel à história, mas não tem obrigação de observar esta fidelidade. Isto é, não tem o dever de ser honesto devido à imaginação dele Ford que é muito fecunda.

E fala isso comtoda naturalidade, sem o menor laivo de paradoxo. Donde se conclui que ao artista, quando rico de imaginação (e será somente neste caso?), assiste o privilégio da mentira, da falsificação, da chantagem e outros crimes menores. De premissa ética tão edificante, concluimos ainda que também o indivíduo comum, quando imaginoso, tem o direito de mentir. Aliás quem “imagina” os filmes de Ford são seus cenaristas, o que talvez, torne inútil toda a argumentação do crítico.

Concluindo: o número 3 de “Complemento” é o melhor até agora aparecido, inspirando-nos justa esperança nessa turma de tanta vitalidade intelectual e tantos talentos inegáveis.





G E R A Ç Õ E S

Sylvio de Vasconcellos da F.A.U.M.G.

(Belo Horizonte - 09 de Junho de 1957)


Em todo o Brasil, porém, mais especialmente em Minas, de uns tempos para cá vem sendo veso constante a acentuação das gerações de novos com uma enfase que nos parece excessiva. Pelo menos inútil. Geração de 30, de 40, geração de 45, cada uma delas quando mais fortemente caracterizada, responsável obrigatória por um movimento intelectual que aflora principalmente em uma publicação própria: “Surto”, “Edifício”, “Complemento”, etc.. Ora, a manifestação dos jovens como força nova e sua contribuição à cultura é, evidentemente, muito procedente e necessária. Contudo, a constituição estanque de cada grupo e a contingênica de originalidade à qual se submetem, com o decorrente desligamento da conjuntura cultural imediatamente anterior não parece justificar-se. Mesmo porque esse desligamento quase sempre leva à oposição, ao dever de superar sempre que a posição de vanguardismo impõe, como se fosse possível, no curto intervalo de um par de anos, acontecer de fato renovações substanciais no campo da cultura. Os resultados, dentre outros, são principalmente os seguintes: ou a geração nova se inibe na impotência de criar novidades, considerando-se como fracassada, ou se empenha em qulaquer movimento forçado, cujo único mérito consiste em ser diferente dos anteriores ainda que sem maior significação. Ambas soluções em nada acrescentam à inteligência pátria nem em nada ajudam à formação dos jovens. Antes a prejudicam, às vezes irremediavelmente.

A continuidade é um dos fatores precípuos do desenvolvimento do conhecimento humano e quanto mais intimos forem os contatos do presente com o passado mais promissor se apresentará o futuro. A inventica, a originalidade, a contribuição excepcional, evidentemente não é desprezível. Pelo contrário, é dos fatores mais importantes na caracterização da obra de arte ou de cultura da obra de arte ou de cultura. Contudo, essa originalidade não pode ser perseguida por si mesmo, como se pudesse nascer do nada, fruto do acaso ou de uma genialidade preconcebida. Inversamente, ela decorre quase sempre da paciente pesquisa, do estudo das manifestações similares pretéritas e do conhecimento profundo das realizações passadas. E muitas vezes se manifesta, não no todo mas no pormemor, no detalhe, no pouco que se acrescenta ao já sabido ou na nova maneira de encarar fato ou processo já versado. Portanto, o desapreço à contribuição de gerações anteriores só pode resultar em dificuldades, em tendência ao auto-didatismo cuja menor prejudicial consequência é a perda irreparável de tempo.

Estas considerações nos vieram à mente provocadas pela leitura de um ensaio muito interessante e curioso do S. Theotônio Junior na revista que sua “geração” dá a lume: “Complemento”. Se bem que não se referisse aos aspectos do problema que tentamos focalizar, suas considerações sobre a situação dos moços de hoje as sugerem perfeitamente. Ainda mais porque, fugindo das tentativas vastas de inovações despropositadas, focaliza, exatamente, as dificuldades com as quais se defronta a sua geração, não procurando, todavia, buscar-lhes as origens. São estas que procuramos situar, pelo menos em parte na falta de contato maior com os mais velhos. No caso atual sem culpa dos jovens, pois em consequência de circunstâncias várias poucos são os mais velhos disponíveis em Belo Horizonte. A maioria buscou e busca ainda outros ambientes onde as oportunidades de realização são maiores. Quase toda aa geração imediatamente anterior à de “Complemento” não se acha mais na capital. Waldomiro Autran Dourado, Alfonsus de Guimarães Filho, Hélio Peregrino, Clemente Luz e muitos outros encontram-se no Rio. Por aqui só ficaram uns poucos, por sua vez desligados dos anteriores, cujo isolamento cada vez mais se acentua, infelizmente. Não tendo com quem trocar idéias, de quem discordar, de que se valer nas dúvidas, fica o jovem desamparado, sem ponto de referência onde apoiar-se. Estarei certo em minhas idéias? Minha posição frente às correntes culturais existentes é a melhor? Quais as tendências da literatura atual? Enfim, como viver culturalmente?

Essa a falta de situação assinalada pelo Sr. Theotônio Junior, problema muito bem exposto e que suscita muitas conclusões. Só achamos que a falta de situação não é da responsabilidade dos moços e quase não depende deles superá-la. O que não há é ambiente em nossa cidade, o que não há é vida intelectual, aitividade da inteligência, estímulo. Paradoxamente não há vida onde sobram viventes. O nível cultural de nossa universidade, tanto de professores como, e principalmente, de alunos em nada fica a dever aos demais centros de estudo do país. Gente existe com muita leitura e muita capacidade. O que não há é polarização, é exteriorização. Há cultura, falta vida cultural.

O complexo de inferioridade em que vivemos, os mineiros, as inibições resultantes da falsa modestia aliada a uma mal disfarçada vaidade vem impedindo sistematicamente qualquer manisfetação mais viva de nossa capacidade intelectual. Fazem-se exposições de arte: ninguém critica, ninguém elogia, ninguém desaprova, publicam-se livros: ninguém os analisa, ninguém os divulga ou os debate; ocorrem conferências: ninguém quase as ouve nem delas discorda publicamente nem as discute, escrevem-se artigos, ensaios, poemas: ninguém se manifesta sobre. Em ondas curtas, de orelha a orelha, fervilham comentários desairosos. De público, porém, boca de siri ... Por sua vez os nossos jornais não atingiram ainda o nível cultural comum aos demais do Brasil. O nosso jornalista não se julga um intelectual. Sua tarefa é tida como apenas artesanal, publicitária, sem qualquer compromisso com a inteligência. Há exemplos gritantes nesse setor. Por exemplo: Os Diários Associados, em Juiz de Fora, publicam semanalmente suplementos de quatro e seis páginas, inteiramente dedicados à cultura. Os mesmos Diários Associados, em Belo Horizonte, às vezes nos brinda com uma página apenas de suplemento literário, onde a maioria das colaborações são de fora. Vespertinos do Rio ou de São Paulo publicam maia página diária de matéria literária e outros jornais dão dois e três suplementos semanais dedicados à cultura, ao passo que em Belo Horizonte mal se dispõe de uma página semanal assim mesmo preenchida por anúncios.

Só aceitando o gênio consagrado, não temos coragem de elogiar, de incentivar, nem a coragem de produzir com o medo sempre presente da critica ferina e pouco generosa. Esta a falta de situação a que se referia Theotônio. Falta de situação não só para os jovens como para todos. Não são apenas eles que estão desarvorados. Desarvorados estão todos os amigos da cultura em Belo Horizonte, desapoiados da vida intelectual indispensável a florescimento da inteligência.


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